Com bloqueio político e crise econômica, médicos deixam o Líbano

Êxodo tirou mais de mil médicos e mil enfermeiras do país desde 2019

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Por Redação
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BEIRUTE - Há dois anos, Nour al-Jalbout voltava ao Líbano para continuar sua carreira. Hoje, essa médica se prepara para partir para os Estados Unidos, fugindo - como centenas de colegas - de um país em colapso.

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"Minha família está aqui, eu queria servir a comunidade. Dei tudo para o Líbano, mas não recebi nada em troca", desabafa a jovem, entre duas intervenções no pronto-socorro do prestigioso hospital da universidade americana de Beirute (AUB). Partir é uma decisão "que devora você por dentro todos os dias", diz ela. "Mas é a melhor coisa a fazer".

Com o jaleco ainda manchado de sangue de um paciente ferido a bala, ela examina o raio X de outro paciente, vindo de outro país da região. Até pouco tempo atrás, o Líbano era apelidado de "o hospital do mundo árabe", por seus serviços médicos no setor privado e por seus médicos formados na Europa e nos Estados Unidos.

A médica Nour al-Jalbout vai deixar o país e ir para os EUA Foto: ANWAR AMRO / AFP

Com o bloqueio político e o colapso econômico, o setor da saúde enfrenta uma fuga de cérebros. Com três máscaras cirúrgicas no rosto, Jalbout diz que enviou um pedido de imigração para os Estados Unidos, onde uma vaga em Harvard a aguarda. Depois de um ano infernal, ela não se sente mais segura em um país instável. "Amo Beirute, mas é como ópio: é viciante, mas é tóxico", confessa. 

Com lágrimas nos olhos, lembra dos feridos que chegaram em massa na tarde de 4 de agosto, quando toneladas de nitrato de amônio explodiram no porto de Beirute. Ela então recebeu um telefonema de seu marido, que lhe disse que seu apartamento havia sido destruído. A tragédia deixou mais de 200 mortos.

Catastrófico

Com o colapso da libra libanesa, nem mesmo as classes mais privilegiadas foram poupadas. Convertidos em dólares, os salários dos médicos não valem nada. Os bancos fazem de suas poupanças reféns, pois impõem restrições drásticas aos clientes.

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Nesse contexto, apesar dos meios limitados e da escassez, o setor médico teve de enfrentar uma explosão de casos de coronavírus no início do ano, com estabelecimentos saturados. Para este país em crise, não há sinais de melhora à vista: a classe política, acusada de corrupção e de incompetência, está emaranhada há mais de sete meses na formação de um novo governo.

Fugindo do caos generalizado, cerca de mil médicos - ou seja, 20% do contingente - deixaram o Líbano desde 2019, afirma o presidente de seu sindicato, Charaf Abou Charaf. Muitos tinham grande prestígio e, portanto, eram importantes tanto na cura quanto no treinamento da próxima geração de médicos.

"Eles têm em sua maioria entre 35 e 55 anos e representam a espinha dorsal do setor médico. Se isso continuar, será catastrófico", lamenta Abou Charaf. Alguns migram para o Golfo, outros para a Europa, Austrália ou Estados Unidos.

Essa fuga de cérebros é vivida com sofrimento pelo presidente do sindicato: "Temos investido na educação dos nossos filhos. O Ocidente vem buscá-los e vai tirar proveito deles, quando precisamos desesperadamente deles". O êxodo não tem precedentes, admitiu, o presidente da comissão parlamentar para a saúde, Assem Araji.

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"Quando fazia minha residência no AUB nos anos 1980, o cheiro da morte estava nas ruas por causa da guerra civil", tuitou recentemente. "Mas apenas um número limitado de médicos havia partido". Cerca de 1.000 enfermeiras também deixaram o país, segundo seu sindicato.

Aos 40 anos, o psiquiatra François Kazour voa para a França no sábado com sua esposa dermatologista e seus dois filhos. O casal passará por um longo processo para obter a equivalência do diploma.

A saída do Líbano, país onde esperava ver seus filhos crescer, causa "muita amargura" para este franco-libanês, que dá aulas na universidade. Kazour fala sobre a crise econômica e a queda da receita, mas explica que não é esse o principal motivo de sua saída. "Desde que nasci, a vida é marcada pela guerra, instabilidade política, explosões. Sinceramente, não quero que meus filhos passem por isso". / AFP 

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