Com guerra de trincheira e baixa tecnologia, Exército da Ucrânia está longe do poder de fogo da Otan

Quase nada a respeito das atividades cotidianas dos soldados ucranianos se assemelha ao tipo de sofisticação militar e modernidade que distingue os membros da aliança militar

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Por Andrew E. Kramer
Atualização:

POPASNA, UCRÂNIA — Os soldados vivem em bunkers escavados no solo e cozinham suas próprias refeições, secam as meias molhadas em varais subterrâneos. Muitas de suas armas foram fabricadas na era soviética, meio século atrás.

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As trincheiras geladas do leste da Ucrânia, onde tropas do governo combatem separatistas apoiados pela Rússia, um dos impasses cruciais entre Moscou e o Ocidente — se a Ucrânia deve poder aderir à Otan — parece pouco premente ou até irrelevante: quase nada a respeito das atividades cotidianas dos soldados ucranianos se assemelha ao tipo de sofisticação militar e modernidade que distingue os membros da Otan.

“Você cava um buraco e depois dorme no maldito buraco”, afirmou o soldado Yuri Todorchuk, de 53 anos, resumindo o serviço no Exército ucraniano no leste do país. “Até os jovens ficam com as costas doendo” de tanto cavar, afirmou ele.

Botas de soldados ucranianos são colocadas para secar na linha de frente perto de Trokhizbenka, no leste da Ucrânia Foto: Tyler Hicks/The New York Times

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, concentrou cerca de 130 mil soldados nas fronteiras da Ucrânia, impingindo temores de uma invasão por uma força russa de combate modernizada e mortífera. E ele insiste aos Estados Unidos e à Europa Ocidental que a Ucrânia jamais deve ter sua adesão à Otan permitida, uma exigência que o Ocidente rejeita.

Mas vários dias de observação nas linhas de frente na semana passada evidenciaram táticas excruciantes e a baixa tecnologia do Exército ucraniano. Pressionados fortemente para obter soldados, os militares agora admitem que conscritos de até 57 anos se alistem para servir por três anos. O Exército está sendo reformado e rearmado, mas permanece com o foco completamente voltado para a guerra de trincheiras — intensiva em força humana — no leste, uma forma de combate decididamente antiquada.

Os oito homens desta pequena unidade, o esquadrão Lima, fazem parte de uma brigada mecanizada das Forças Armadas ucranianas e assim que chegaram à posição, em junho, começaram a cavar, segundo relataram os soldados.

Eles se entocaram em seus lares subterrâneos — dois dormitórios, cada um com duas beliches; uma cozinha; e um recinto para banhos quentes — e desde então vivem nesse espaço cavernoso.

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Sobre a terra, coberturas plásticas fazem ruído debatendo-se no vento gelado. Com as trincheiras dos separatistas próximas de lá, numa linha de árvores do lado oposto de um campo nevado, o único lugar verdadeiramente seguro é no subterrâneo.

Nada a respeito da unidade indica alguma conexão com a Otan fora seu nome, Lima, a designação alfabética da aliança para letra L. Em meio a uma reforma que faz parte da aspiração ucraniana para se juntar à Otan, as unidades militares do país foram redesignadas segundo os padrões da Otan.

O conflito é combatido principalmente com fuzis, metralhadoras, lançadores de foguetes, morteiros e sistemas de artilharia que datam dos anos 70 ou antes. Os EUA vendem mísseis antitanque Javelin para a Ucrânia desde 2018, mas o armamento é destinado principalmente para repelir um grande ataque russo, não para uso na linha de frente. A Turquia fornece outro armamento moderno, o drone armado Bayraktar TB2, mas o Exército ucraniano reconheceu que usou o equipamento somente uma vez durante combate, em outubro.

Ainda assim, analistas militares afirmam que a força está em melhor forma do que em 2014, quando a Rússia anexou a Península da Crimeia e fomentou a guerra no leste ucraniano. Os EUA forneceram US$ 2,7 bilhões em ajuda militar desde então. Nas semanas recentes, o país autorizou a Lituânia, a Letônia e a Estônia a enviar para a Ucrânia mísseis antiaéreos Stinger de fabricação americana, e o Reino Unido forneceu mísseis antitanque teleguiados.

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E o Exército ucraniano é endurecido pela batalha. Cerca de 400 mil soldados do país, incluindo 13 mil mulheres, se revezaram ao longo do front oriental, produzindo um contingente de combatentes veteranos que pode ser acionado para o combate. Na terça-feira, o presidente Volodymyr Zelensky assinou uma ordem declarando sua intenção de acrescentar 100 mil soldados às forças militares ucranianas ao longo de três anos e determinar um aumento de salário para os militares.

Mas múltiplos acionamentos também penalizaram os militares nessa posição, que têm idades entre 25 e 59 anos, afirmou o soldado Volodymyr Murdza, de 53 anos, que está na metade de seu segundo alistamento de três anos. O filho dele também combate na guerra, e sua mulher se preocupa terrivelmente, afirmou ele. “Ela me liga e fala, ‘Me preocupo porque vocês não me ligam’”, afirmou Murdza. “E eu respondo, ‘Minha querida, meu raio de sol, eu te ligo sempre que posso’.”

A proximidade entre as linhas é fonte constante de inquietação, afirmou Murdza. Apenas dois dias antes, um soldado de outra unidade servindo a cerca de 100 metros dali foi ferido com estilhaços de um morteiro, depois de separatistas russos aparentemente determinarem sua localização.

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Soldado ucraniano descansa no front de Trokhizbenka, em 2 de fevereiro Foto: Tyler Hicks/The New York Times

Então, no fim da madrugada, três soldados do esquadrão Lima despertaram para realizar uma operação para evitar um problema similar em seu pequeno labirinto de trincheiras.

A ordem foi disparar uma pesada metralhadora a partir de uma posição em que ela não fica estacionada normalmente. Os soldados descreveram que esses disparos são uma necessidade rotineira, para confundir o outro lado em relação às suas posições e evitar um ataque. Nenhum dos lados atenderam repetidos anúncios de cessar-fogo de políticos. O mais recente anúncio de cessar-fogo ocorreu na semana passada, após negociações diplomáticas entre Rússia, França, Alemanha e Ucrânia, em Paris.

“Você está pronto?”, perguntou um dos soldados, puxando a alavanca para carregar a arma. “Vai acontecer agora.” Eram 3 da manhã.

Então, a pequena trincheira delineada por troncos de árvores foi impregnada pelos estrondos da metralhadora calibre 50, pelos lampejos do cano da arma e pela fumaça acre. Poucas rajadas de cerca de dez projéteis foram disparadas.

À distância, do outro lado da escuridão, um campo de cultivo ocioso que separa os dois lados, outras rajadas irromperam em resposta. Mas os disparos passaram longe, a dezenas de metros da trincheira ucraniana. Um rádio emitiu sons estalados. E então o silêncio prevaleceu novamente, cortado apenas pelo ruído das botas dos soldados ucranianos caminhando na neve, retornando para sua posição usual.

O nível de violência teve altos e baixos ao longo dos oito anos de guerra no leste da Ucrânia, mas o conflito tem sido pouco intenso na maior parte do tempo.

Acionamentos que duram de seis a oito meses são difíceis, mas os períodos de dispensa, em casa, também são, afirmou o soldado Roman Leskiv, de 30 anos, comandante do esquadrão Lima, que tem servido ao Exército desde que a guerra começou.

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“Parece pesado, as pessoas não me entendem”, afirmou Leskiv, explicando que, depois de tantos anos no front, ele tem problemas para viver outra vida. “As férias são a pior parte do ano para mim.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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