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Com saída de Trump, estudiosos tentam compreender seu governo - e o que ele diz sobre a democracia

Não apenas o presidente será analisado pela história, mas também a sociedade americana e o compromisso da nação com a democracia

Por David Nakamura
Atualização:

WASHINGTON - Mais de 30 mil falsidades e mentiras. Quase 400 mil mortes por coronavírus. Nacionalismo branco em ascensão. Autobenefício financeiro. Banimento das redes sociais. Dois impeachments. Um ataque mortal ao Capitólio dos Estados Unidos.

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Os quatro anos de mandato do presidente Donald Trump chegam ao fim na quarta-feira, depois de um reinado definido pelo caos, pela corrupção e por escândalos constantes, um mandato que vários estudiosos preveem que irá colocá-lo entre os piores presidentes da América.

As alegações de vitórias políticas de Trump - como os muitos juízes conservadores e os passos em direção à paz no Oriente Médio - serão amplamente ofuscadas por sua má gestão da pandemia e seu ataque sem precedentes aos resultados das eleições americanas, disseram os estudiosos. “Nesse ranking, ninguém quer ficar abaixo de William Henry Harrison, que foi presidente só por um mês. Se você ficar abaixo dele, quer dizer que prejudicou o país”, disse Douglas Brinkley, historiador especializado em presidência da Rice University. “Aí você começa a entrar no território de James Buchanan e Andrew Johnson. Trump certamente estará nessa categoria”.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, na Casa Branca,no fim de seu mandato Foto: REUTERS/Carlos Barria

Mas, enquanto Trump deixa a Casa Branca - e as controvérsias diárias e a guerra nas mídias sociais que ele provocou começam a diminuir - os historiadores que se preparam para analisar seu legado dizem que não apenas Trump será examinado sob o duro reflexo do espelho da história, mas também a sociedade americana e o compromisso da nação com a democracia. Os ataques implacáveis de Trump às instituições cívicas - os quais provocaram divisões raciais e sociais, atropelaram normas políticas, atentaram contra a imprensa livre e contrariaram aliados internacionais - levantaram questões profundas sobre a natureza da governança americana e a resistência dos valores que os Estados Unidos há muito supõem defender, disseram os estudiosos.

“Trump e o trumpismo deram grande relevo a essas falhas”, disse Matthew Dallek, historiador político da Universidade George Washington. “O fato de 74 milhões de pessoas terem conseguido votar em alguém que dissemina teorias da conspiração, que é um mentiroso contumaz, que encoraja a violência, os Proud Boys e a supremacia branca - tudo isso indica que a presidência de Trump será importante para aqueles que estão refletindo sobre a questão: ‘O que significa ser americano?’. E o que significa viver no país que muitas pessoas consideram que é o maior experimento de democracia do mundo, quando descobrimos que esse experimento é incrivelmente frágil?”.

Os anos de Trump foram uma espécie de bênção para historiadores políticos e acadêmicos que foram alçados à posição de analistas de televisão e especialistas de jornais para avaliar sua presidência em tempo real. Agora, à medida que eles se distanciam dos combates políticos do dia a dia e percorrem os registros históricos dos últimos quatro anos para fazer análises mais amplas sobre seu lugar na história, começa o trabalho mais tradicional.

É aqui que algumas preocupações levantadas sobre o volume e a confiabilidade dos registros podem ajudar a orientá-los. Antes de sua conta no Twitter ser encerrada na esteira do cerco ao Capitólio dos Estados Unidos em 6 de janeiro, Trump postou quase 60 mil tuítes e retuítes para mais de 88 milhões de seguidores - oferecendo uma imagem quadro a quadro de sua mentalidade.

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No entanto, os estudiosos dizem que outros registros, como memorandos e entrevistas com assessores, são mais frágeis. Alguns temem que Trump e seus associados destruam documentos, apesar das leis concebidas para preservá-los; outros expressam preocupações de que os assessores da Casa Branca - os quais, a exemplo de seu chefe, têm um histórico de enganar a população - serão narradores não confiáveis de sua presidência.

O presidente Donald Trump em ato de campanha pela reeleição na Flórida em outubro de 2020 Foto: REUTERS/Carlos Barria

“Eu me pergunto se haverá a mesma documentação sobre as decisões e processos de Trump que temos com outros presidentes”, disse Joseph Crespino, professor de história da Emory University em Atlanta. “Ele não lê, não faz anotações, não escreve memorandos. Será um desafio”.

Em muitos aspectos, a presidência de Trump foi aberrante - um empresário do setor imobiliário e estrela de reality show sem qualquer experiência política ou militar sendo eleito para o cargo mais alto do país, com participação minoritária no voto popular - que é difícil colocá-lo na sequência de seus pares, disseram os historiadores.

No entanto, eles também enfatizaram que Trump não veio do nada: sua ascensão à proeminência política, a partir de uma falsa conspiração sobre o local de nascimento do presidente Barack Obama, na tentativa de deslegitimar seu predecessor, está enraizada no histórico de queixas raciais do Partido Republicano e na crescente disposição de seus líderes para abraçar a extrema direita.

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De maneira similar, disseram eles, o uso de novas ferramentas de mídia social para espalhar desinformação foi possível devido à rápida mudança das tecnologias, mas a retórica que Trump empregou para radicalizar sua base está impregnada da linguagem de demagogos americanos - como Joseph McCarthy, o padre Charles E. Coughlin e George Wallace.

Os historiadores “vão pensar menos em termos de analogia [com os presidentes anteriores] e mais em termos de puncionar o passado mítico que tanto Trump quanto as pessoas que se opunham a ele inflamaram - a ideia de que a América tinha uma forma pura de democracia que nós perdemos por causa de Trump, ou que Trump trouxe de volta”, disse Nicole Hemmer, historiadora que se especializou em mídia conservadora e está estudando a história oral da presidência Obama na Universidade de Columbia.

“Há muito mais continuidade do que podemos pensar”, disse Hemmer. “Talvez não consigamos arrancar uma pessoa do passado e dizer: Donald Trump é igual a essa pessoa. Mas podemos entender que, ao longo da história americana, houve racismo, fascismo e forças antidemocráticas e dizer que ele está se inspirando nessas influências poderosas”.

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Ruth Ben-Ghiat, historiadora da Universidade de Nova York que estuda o fascismo, disse que Trump pode ser mais bem compreendido em comparação com figuras estrangeiras de tendência autoritária que, com o objetivo consolidar seu poder, empregaram táticas semelhantes para semear divisão e caos - o que ela chamou de “política de crise”.

Em sua opinião, os críticos de Trump perderam um argumento importante quando zombaram de sua pessoa, dizendo que ele era preguiçoso e passava o tempo todo jogando golfe e tuitando. Assim como outros autocratas, Trump se concentrou em usar sua presidência para enriquecer - no caso dele, promovendo constantemente seus campos de golfe e resorts particulares.

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E o presidente se valeu de suas contas nas redes sociais para deslegitimar as críticas e garantir a lealdade de seus seguidores, impulsionando um “culto à personalidade que é desproporcional a qualquer outro presidente, até mesmo Ronald Reagan”, disse Ben-Ghiat. “Não creio que possamos usar o mesmo quadro de referência de outros presidentes porque Trump nunca quis governar de maneira presidencial”, enfatizou ela. “Seus objetivos e metas eram totalmente diferentes”.

Os republicanos consideraram exageradas as críticas à presidência de Trump e culparam seus críticos por atiçar as divisões partidárias e culturais que ocasionaram protestos em massa por justiça social no verão passado e violentos confrontos entre seguidores e opositores de Trump desde a eleição.

Os aliados de Trump no Partido Republicano também apontaram os sucessos na agenda conservadora do partido - a indicação de três juízes conservadores para a Suprema Corte, um corte de impostos apoiado pelos republicanos, a ampla desregulamentação ambiental e empresarial - como evidência das realizações do presidente. E observaram que Trump recebeu 74 milhões de votos em 2020, o segundo maior número em uma eleição presidencial, ante os 81 milhões de Biden, o que reflete seu profundo apoio junto à população.

Ainda assim, os historiadores disseram que é praticamente certeza que o mandato de Trump seja definido pelos eventos tumultuosos do ano passado, durante os quais ele procurou minimizar os riscos da pandemia, usou a força do governo para expulsar manifestantes de um parque em frente aos portões da Casa Branca em junho, alegou falsamente vitória sobre o presidente eleito Joe Biden e incitou a multidão que invadiu o Capitólio, resultando na morte de cinco pessoas.

Para Leah Wright-Rigueur, professora associada de história americana na Universidade de Brandeis, a presidência de Trump tem sido um exemplo da “evidente e absoluta busca por poder e interesses próprios, ao custo de 400 mil vidas e da união americana”. Ela acrescentou que os quatro anos de Trump expuseram dramaticamente aquilo que as minorias raciais e os outros americanos marginalizados compreenderam há muito tempo: que a democracia da nação sempre foi “brutal, excludente e falha” para muitos cidadãos.

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A tomada do Capitólio “será o momento de que todos se lembrarão da presidência de Trump”, disse Wright-Rigueur. “Esse evento diz muito sobre as falhas da democracia americana - não só sobre Trump, mas também as mentiras centenárias que contamos a nós mesmos sobre quem realmente somos”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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