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Comissão da ONU diz que cerco a reduto rebelde sírio é crime de guerra

Relatório das Nações Unidas aponta que governo de Bashar Assad usou armas químicas, atacou hospitais e escolas e adotou uma estratégia deliberada para proliferar fome em Ghouta Oriental

Por Jamil Chade , correspondente e Genebra
Atualização:

GENEBRA - A Comissão de Inquérito da ONU sobre a Síria, liderada pelo brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, qualificou o cerco à região de Ghouta Oriental como crime de guerra. De acordo com um relatório publicado nesta terça-feira, 6, o governo sírio usou armas químicas, atacou hospitais e escolas e ainda adotou uma estratégia deliberada para proliferar a fome no enclave controlado por jihadistas desde 2012.

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Os ataques em Ghouta Oriental deixaram mais 5,6 mil feridos Foto: AFP PHOTO / Ammar SULEIMAN

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A constatação faz parte de uma investigação que, diante do início do sétimo ano do conflito militar na Síria, aponta que mais da metade da população do país foi obrigada a deixar suas casas e 13,5 milhões precisam de ajuda humanitária.

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Na segunda-feira, uma resolução foi aprovada no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, conferindo um mandato à Comissão de Inquérito presidida por Pinheiro para que faça um levantamento sobre o que acontece no mais recente capítulo da guerra na Síria.

Desde meados de fevereiro, mais de 700 pessoas morreram na região localizada perto de Damasco e com uma população de 400 mil habitantes. Os ataques também deixaram mais 5,6 mil feridos. O local, que originalmente contava com uma população de 1,5 milhão de habitantes, hoje abriga apenas 390 mil civis.

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Em um relatório apresentado nesta terça-feira, porém, Pinheiro se concentra nos crimes cometidos no enclave rebelde ao longo dos últimos meses. “Entrando em seu quinto ano, o cerco a Ghouta tem sido marcado por métodos cínicos de guerra, que levaram às piores taxas de má nutrição entre todos os casos do conflito sírio”, destacou ele.

"Caracterizado por crimes de guerra generalizados, incluindo o uso de armas proibidas, ataques contra civis, fome deliberada e recusa à retirada médica, o cerco continua a afetar principalmente milhares de civis."

O documento também destaca como grupos armados de oposição ao governo têm realizado “ataques indiscriminados”, causando a morte de civis na cidade de Damasco, controlada pelo governo. Staffan de Mistura, mediador da ONU para o conflito na Síria, chegou a apontar que o cerco “pertence à Idade Média”.

Crise

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De acordo com a investigação, o cerco promovido pelo governo começou em abril de 2013, com propinas sendo cobradas pelos soldados inclusive para permitir que produtos básicos pudessem entrar na região. Sem combustível, a população local começou a queimar plástico e a produzir diesel de forma caseira.

Em 2015, o governo cortou o acesso da população de Duma ao abastecimento de água, levando a população local a cavar cerca de 600 poços. Outro resultado do cerco foi a proliferação de túneis construídos pelos habitantes para contrabandear comida e remédios.

Mas desde maio de 2017, esses túneis também foram fechados, obrigando a ONU a ter de negociar o abastecimento da população local com o governo de Bashar Assad. Mesmo quando isso era autorizado, o volume de ajuda atendia a apenas 20% das pessoas.

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A região está atualmente sob o controle de dois grupos jihadistas - o Jaysh al-Islam e o Faylaq ar-Rahman. Os ataques do governo a ambos, porém, têm causado a morte de dezenas de civis, presos entre os grupos. Segundo a investigação, essas ações seriam crimes de guerra.

O fechamento dos poucos pontos de passagem para o enclave também levou os preços de produtos locais a subir. Um quilo de açúcar hoje na região pode custar 16 liras sírias e um litro de leite, mais de 25 mil. Famílias sobrevivem com uma renda diárias de apenas US$ 10, quando de fato necessitariam de pelo menos US$ 50. Carne e frango raramente podem ser encontrados. O resultado é uma “aguda má nutrição, com a morte de diversas crianças”.

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Armas e destruição

Pinheiro relata ainda o uso de armas químicas por parte do governo, tática usada em Ayn Tarma, Zamalka e Jowbar em julho, e Harasta em novembro.

De acordo com a investigação, pesticidas podem ter sido utilizados nesses ataques, o que talvez explique o fato de que as vítimas conseguiram sobreviver. “Ainda que a Comissão de Inquérito seja incapaz de estabelecer o sistema de ataque usado, nota-se que ele segue o mesmo padrão utilizado pelas forças do governo”, apontou. O relatório denuncia o uso de outras armas proibidas por seu efeito indiscriminado contra a população civil, o que também seria crime de guerra.

A investigação apontou que, entre outubro e novembro, um “número alarmante de escolas e creches” foram bombardeadas, causando a morte de várias crianças. Dezenas de outras foram fechadas, deixando “milhares sem educação”. Apenas no dia 8 de novembro, três colégios foram alvos de ataques aéreos.

Outra estratégia identificada por Pinheiro é a destruição de hospitais, impedindo que feridos sejam socorridos. Em alguns locais de Ghouta, os médicos passaram a usar apenas o porão do centro de saúde para fazer cirurgias e atender pacientes, na esperança de evitar o impacto das bombas. Médicos entrevistados pelos investigadores apontam que os ataques são represálias ao fato de estarem atendendo a população do enclave rebelde.

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“Entre 14 e 17 de novembro, 84 pessoas morreram e outras 659 foram feridas. Na tarde do dia 20 de novembro, quando hospitais estavam lotados de feridos, bombas foram lançadas por forças do governo a partir de Al-Maliha”, afirma o relatório. Em um desses ataques, uma mulher e seus quatro filhos foram mortos.

Por meio dos túneis, centenas de pacientes conseguiram escapar para serem tratados em Damasco e outras regiões. Contudo, desde o fechamento das passagens, “todos os movimentos de pacientes foram interrompidos, levando a uma situação desesperadora”.

Em dezembro, o número de pacientes que precisavam ser retirados era de 529. Mas o governo barganhava o acesso dessas pessoas aos hospitais, chegando a promover uma troca: um paciente atendido teria de ser trocado pela liberação de um soldado preso pelos grupos de oposição. Enquanto esperavam por uma retirada, ao menos duas crianças morreram em dezembro.

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