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Como a ‘Cúpula pela Democracia’ de Biden pode beneficiar de fato as Américas; leia análise

Encontro é oportunidade de compartilhar melhores práticas e desenvolver normas globais

Foto do author Oliver  Stuenkel
Por Oliver Stuenkel
Atualização:

SÃO PAULO – A maioria dos observadores concorda que a democracia na América Latina está enfrentando sua pior crise em décadas. Desde a consolidação de autocracias na Nicarágua, em El Salvador e na Venezuela, até a ascensão de populistas de mentalidade autoritária no Brasil e no México, existe uma crescente percepção de que líderes democráticos foram pegos no contrapé e que uma maior erosão da democracia — incluindo nos Estados Unidos — é uma possibilidade bastante real. Inicialmente vistos como aberrações, Trump, Bolsonaro, Bukele e López Obrador poderão se tornar, temem alguns, o novo normal.

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Neste contexto profundamente preocupante, uma reunião global para discutir maneiras de fortalecer a governança democrática no mundo é um empenho louvável. Mas é verdade que o encontro padece de vários problemas desde o início. Mais de 100 líderes e representantes da sociedade civil e do setor privado foram convidados para a cúpula marcada para 8 e 9 de dezembro. Obviamente, os EUA incluíram alguns países não democráticos (como Angola) e ignoraram algumas democracias (como a Bolívia), presumivelmente por motivações geopolíticas. De maneira mais importante, a presença dos líderes do Brasil, da Índia e do México — cujo comprometimento com a democracia é altamente questionável — sugere que considerações estratégicas de Washington também influenciaram a lista de convidados.

Em segundo lugar, críticos na América Latina tendem a se perguntar o que dá aos EUA — um país que tem perdido colocações na maioria das classificações por critérios democráticos mais recentes — a legitimidade para convocar uma cúpula desse tipo, para começar. No Economist Democracy Index, por exemplo, Uruguai (em 15.º lugar) e Chile (em 17.º lugar) são categorizados como “democracias plenas”, enquanto os EUA (em 25.º lugar) aparecem como “democracia incompleta”. Por que não organizar a cúpula em Montevidéu?

Se governo Biden agir, impacto de cúpula poderá ser mais relevante do que muitos céticos acreditam Foto: Tom Brenner/REUTERS

Ainda assim, contanto que o governo Biden dê três passos no contexto da cúpula, seu impacto poderá ser mais relevante do que muitos céticos acreditam.

Primeiro de tudo, as reuniões deveriam ter foco, acima de tudo, sobre fontes domésticas da crise global da democracia. Nas Américas, cinco se sobressaem: piora na desigualdade, serviços públicos ruins, polarização, disseminação de fake news e, em parte como consequência dos dois primeiros fatores, militarização da política. Existe um vasto potencial para discutir as melhores práticas a respeito de como abordar as questões: sejam melhorias na cooperação regional para reduzir a pobreza, melhorar a educação e a saúde pública, combater as mudanças climáticas (que exacerbam a desigualdade) ou discutindo maneiras de encontrar regras e normas comuns a respeito de como lidar com a propagação de fake news em plataformas de redes sociais comoFacebook, WhatsApp e, mais recentemente, Telegram.

Da mesma maneira, há potencial para a criação de regulamentações normativas regionais que busquem reduzir o papel das forças armadas na política. Tais normas poderiam, por exemplo, incluir uma declaração regional de comprometimento de governos em trabalhar na direção de proibir militares na ativa de assumir cargos no governo, um fenômeno que leva inevitavelmente à erosão da democracia. Em um momento de crescente cooperação entre as forças armadas dos EUA e seus colegas de farda brasileiros, por exemplo, declarações públicas de generais americanos afirmando que o atual engajamento de alto nível é condicionado ao compromisso das forças armadas brasileiras em se opor a qualquer ameaça à democracia teriam um valor significativo, eliminando suspeitas de que o governo dos EUA poderia fazer vista grossa a excessos autoritários de líderes das Américas contanto que eles projetem a si mesmos como parceiros valorosos na contenção da influência chinesa.

Crianças em situação de pobreza; em 2020,mais de 17 milhões de crianças e adolescentes até 14 anos viveram abaixo da linha de pobreza no Brasil. Foto: Bruna Justa/ Estadão

Em segundo lugar, a atual crise na democracia dos EUA ocasiona uma oportunidade para superar uma crença ainda comum a respeito de como democracias ocidentais ricas podem servir de modelo para países mais pobres e não ocidentais. Em vez disso, a Cúpula pela Democracia deveria prover uma plataforma em que as melhores práticas podem ser compartilhadas e normas globais podem ser desenvolvidas conjuntamente. Afinal, ainda é negligenciado com frequência o fato de que o estado global da democracia é muito mais matizado: em rankings de democracia, países latino-americanos como Costa Rica ou Chile apresentam melhor desempenho do que a França, enquanto Botsuana se coloca à frente da Bélgica. No mais recente ranking da Freedom House, a Mongólia aparece mais bem colocada do que os EUA.

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Finalmente, o tom geral da cúpula deveria evitar a desagregadora retórica “democracias versus autocracias”, que evitará o engajamento de governos latino-americanos de maneira significativa, considerando sua preocupação em antagonizar-se desnecessariamente com parceiros como a China. De maneira mais importante, a preocupação histórica com intromissões estrangeiras faz líderes da região temerem qualquer retórica que possa sugerir que soberania é condicionada ao estado democrático de direito. Essas preocupações não são novas: quando a ex-secretária de Estado americana Madeleine Albright promoveu a criação de uma “Comunidade de Democracias”, em 2000, até mesmo o então presidente brasileiro, Fernando Henrique Cardoso, que não pode ser acusado de manter ambições autoritárias, declinou educadamente de assumir um papel de liderança na iniciativa.

No fim, muito dependerá não da cúpula em si, mas da possibilidade de o governo Biden usá-la ou não como um ponto de partida para perseguir ativamente a agenda da democracia, por exemplo pronunciando-se assertivamente toda vez que líderes como o brasileiro Jair Bolsonaro adotarem táticas autoritárias — e deixando claro que violações ao estado democrático de direito teriam consequências concretas para as relações bilaterais. A não ser que o governo americano esteja disposto a isso, o impacto da cúpula será insignificante. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

* É COLUNISTA DA REVISTA AMERICAS QUARTERLY E PROFESSOR DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA FGV EM SÃO PAULO