The Economist: Como a Rússia ressuscitou a Otan

A Ucrânia forçou americanos e seus aliados a se unirem, mas o futuro do país ainda é incerto

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Por The Economist
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A gigante mesa oval de Vladimir Putin no Kremlin é tão extrema quanto cafona. Sentar-se longe de visitantes estrangeiros pode ser sua maneira de distanciamento social. Mas também expressou o abismo que separava o líder russo de seu convidado, o francês Emmanuel Macron. E foi capaz de ilustrar o que diplomatas dizem a respeito do preocupante isolamento de Putin em relação ao mundo. Ninguém pode afirmar que lê a mente do líder russo enquanto ele concentra aproximadamente 130 mil soldados nas fronteiras em torno da Ucrânia. Estará ele prestes a lançar a maior guerra na Europa desde a queda do Muro de Berlim? Ou tudo não passa de um grande blefe?

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Em 7 de fevereiro, Macron tornou-se o primeiro líder ocidental peso-pesado a visitar Moscou este ano para decifrar as intenções de Putin. Depois de cinco horas de conversa, nenhum desdobramento ficou claro. Ainda assim, há pouca alternativa a não ser negociar com Putin. A Rússia reuniu a mais densa concentração de poderio militar que a Europa testemunhou em décadas. A Ucrânia está cercada por três lados. Embarcações anfíbias de assalto da Rússia estão se concentrando no Mar Negro. Em 5 de fevereiro, os EUA afirmaram que a Rússia havia acionado 70% das forças que necessitaria para invadir a Ucrânia: um ataque poderia começar “qualquer dia”. Bombardeiros com capacidade nuclear realizaram patrulhas próximo ao espaço aéreo da Polônia. 

A Otan não lutará pela Ucrânia. Em vez disso, EUA e Europa forjaram uma resposta em três vertentes: dissuasão, armando a Ucrânia e ameaçando sanções econômicas sem precedentes caso a Rússia atacar; garantias a aliados, acionando forças-extra para a Europa Central e o Leste Europeu; e diplomacia para deter Putin. Contanto que a Rússia continue negociando, esperam os europeus, o país não começará a atirar. 

Reunião do alto comando da Otan em Bruxelas; novo impulso à aliança atlântica Foto: Johanna Geron/REUTERS

Macron possui ambições maiores. Com a partida de Angela Merkel, a veterana chanceler alemã, ele pode reivindicar o posto de estadista-sênior da Europa. Além de evitar a guerra, ele pretende definir o status da Ucrânia, colocar a Europa de volta na arena internacional e, finalmente, estabelecer uma maior “soberania europeia” e um novo ordenamento de segurança no continente. 

Sobre o impasse militar, Macron alertou para o risco de “incandescência”. Mas diplomatas franceses e alemães foram mais reticentes em declarar que a concentração militar russa sinaliza uma invasão “iminente", como EUA e Reino Unido tenderam a argumentar. 

Autoridades europeias agora vislumbram um caminho estreito para evitar o conflito, que passa pelo Formato Normandia, o único fórum em que Rússia e Ucrânia podem negociar diretamente. De todas as exigências de Putin, desde impedir a expansão ao leste da Otan e até fazer recuar os atuais posicionamentos militares da aliança, o que parece incomodar mais o russo é a Ucrânia. O país pendeu para o campo ocidental desde 2014, quando uma revolta depôs seu autocrático presidente apoiado por Moscou, Viktor Yanukovych, o que impeliu Putin a anexar a Crimeia e fomentou uma revolta separatista na região do Donbas, no leste ucraniano. 

Diante da força das armas, Petro Poroshenko, o seguinte presidente eleito da Ucrânia, aceitou os Acordos de Minsk, que são deliberadamente vagos. No campo da segurança, seu texto obrigou um cessar-fogo, a retirada de armamentos pesados das linhas de frente, uma troca de prisioneiros e a remoção de “tropas estrangeiras”, referindo-se aos russos. No campo político, a Ucrânia concordou em fazer mudanças constitucionais para "descentralizar" o poder, organizar eleições locais e conceder ao Donbas um status especial. Seria permitido à Ucrânia, então, retomar o controle sobre sua fronteira. 

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O quão “especial" seria esse status foi deixado sem definição, assim como a sequência precisa dos passos a serem tomados e questões a respeito das maneiras como o 1,5 milhão de deslocados no Donbas pelo conflito deveriam ser ouvidos sobre o futuro da região. A lei ucraniana não se aplicaria por lá de fato. Para a Rússia, o propósito de Minsk foi criar um cavalo de Tróia para lhe dar controle sobre a Ucrânia. 

A tentativa de Poroshenko, em 2015, de aprovar uma versão abrandada das mudanças constitucionais no Rada (o Parlamento) desencadeou ferozes protestos de nacionalistas, resultando na morte de vários guardas nacionais. Mas desafiando expectativas de seu colapso, a Ucrânia improvisou e se esquivou, sobreviveu e se consolidou, estabilizou sua economia e reforçou e modernizou seu Exército. Como diz o primeiro verso do hino nacional do país, “A Ucrânia ainda não está morta”. Mas Poroshenko não conseguiu implementar os Acordos de Minsk nem desviar deles. À medida que a crise ucraniana se incendeia novamente, líderes europeus estão insistindo ao seu sucessor,Volodmir Zelenski, que retome Minsk. 

Mas implementar os acordos ficou muito mais difícil. A Rússia intensificou seu controle sobre os territórios separatistas, construiu uma força de estimados 40 mil homens, eliminou alguns comandantes desordeiros, instaurando seus próprios líderes, e distribuiu centenas de milhares de passaportes para residentes do Donbas, muitos dos quais votaram nas eleições parlamentares russas do ano passado. 

Trazer o Donbas de volta para a Ucrânia segundo os termos de Moscou significaria o fim do Estado soberano ucraniano, temem muitos habitantes do país. Uma preocupação é que essa mudança constitucional rumo à “federalização" daria ao Donbas — e consequentemente à Rússia — poder de veto sobre a política pró-Ocidente da Ucrânia, marcadamente sua capacidade de aderir à Otan. Outra é que a alteração poderá corroer o país por dentro, concedendo à Rússia mais meios de interferir em seus assuntos. Comoaponta o Zerkalo Nedeli, um semanário online ucraniano, forçar a Ucrânia a aplicar Minsk é “uma vagarosa e dolorosa execução — não a tiros, mas com injeção de um veneno letal”. Com sua popularidade registrando índices abaixo de 25%, uma crise energética à espreita e o custo de vida subindo, Zelenski enfrentaria protestos em massa se os ucranianos passarem a vê-lo como traidor. 

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Evite a linha finlandesa

Uma peculiaridade desta crise é que, mesmo que ninguém na Otan pense que a Ucrânia estará pronta para aderir proximamente, se é que algum dia estará, a aliança não pode dar a parecer que encerrou sua política de “portas abertas” em face às ameaças russas. Além disso, Finlândia e Suécia são países tão próximos à Otan — e tão interoperáveis com a organização — quanto é possível ser sem aderir efetivamente à aliança. Realmente, o comportamento brutal da Rússia acende debates nos dois países sobre sua adesão. E mais: Finlândia, Suécia e Áustria são membros da União Europeia, que Putin também desgosta. 

O processo da Normandia dá a França e Alemanha chance de reivindicar lugar nas negociações com a Rússia, que até agora têm sido dominadas pelos EUA e pela Otan, a não ser que os russos submetam novos tratados a essas duas entidades. Os franceses, apesar de integrar a Otan, eriçaram-se, não surpreendentemente, apenas por serem “inquiridos" pelos americanos.

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Dois anos atrás, Macron havia anunciado a “morte cerebral” da Otan, atribuída a duas aflições: sob Donald Trump, os EUA não estavam mais dispostos a garantir a segurança da Europa; e alguns membros, como a Turquia, estavam agindo unilateralmente na “vizinhança" da Europa, sem consultar os aliados. 

Desde então, porém, a Otan se reavivou admiravelmente. Sob o presidente Joe Biden, os EUA soaram o alarme a respeito da concentração de tropas russas e coordenaram a resposta do Ocidente. “Putin, por si só, deu à Otan uma injeção de vitamina”, afirmaWolfgang Ischinger, presidente da Conferência de Segurança de Munique, uma tertúlia transatlântica anual que se inicia em 18 de fevereiro. As três décadas de angústias da Otan sobre seu papel após o fim da Guerra Fria foram dissipadas. Depois de realizar operações “fora de área” nos Bálcãs e contrainsurgência no Afeganistão, a aliança está retornando ao básico: a defesa do território de seus aliados. A teológica rivalidade entre as instituições em Bruxelas a respeito da UE dever possuir capacidade autônoma de defesa foi paralisada pelo momento.

A UE foi escanteada desta crise, talvez inevitavelmente. Desde que a França bloqueou a ideia de uma Comunidade de Defesa Europeia, com um Exército paneuropeu, em 1954, a integração europeia foi perseguida principalmente por meios econômicos. Mas agora a França pressiona intensamente a UE para constituir sua própria capacidade militar. 

O cérebro volta à vida

Atlanticistas preocupam-se há muito, estimando que, na melhor das hipóteses, a UE duplicaria suas escassas capacidades militares e na pior, afastaria os EUA. Os compromissos subsequentes criaram uma miríade de estruturas e iniciativas europeias, mas pouca força militar adicional. Por exemplo, desde 2007, a UE mantém dois batalhões de aproximadamente 1,5 mil soldados cada, supostamente prontos para ser acionados rapidamente. Eles jamais foram acionados, apesar de a UE ter organizado outras missões específicas. Ao resistir à Rússia, foram os membros da Otan, individualmente e coletivamente, incluindo a França, que levantaram os porretes, enviando tropas para reforçar seus aliados do Leste Europeu. 

“A União Europeia é incapaz de defender a Europa”, afirma Jens Stoltenberg, secretário-geral da Otan, notando que “80% do investimento em defesa da Otan ocorre em não membros da UE”. O peso militar da Otan deriva principalmente da força americana. Mas a coisa vai além, afirma Stoltenberg. Reino Unido, Islândia e Noruega, que não estão na UE, são vitais para garantir a segurança do flanco norte, juntamente com o Canadá. Similarmente, apesar de tensões com seus aliados da Otan, a Turquia apoia a Ucrânia e ancora a aliança no sudeste. Em troca, a Otan ajuda os EUA a manter uma incomparável rede de amigos e aliados. Europa e América do Norte, afirma Stoltenberg, devem permanecer em “solidariedade estratégica”.

Mas apesar de toda primazia da Otan, a organização é incapaz de resolver o problema da Rússia. Para começar, a aliança não inclui Finlândia e Suécia. Apesar de não serem cobertos pelo Artigo 5.º, que qualifica um ataque contra um aliado como um ataque contra todos, os países estão nominalmente protegidos pela provisão de defesa mútua no Artigo 42.º (7) do tratado da UE. Além disso, é a UE que coordena conjuntamente e impõe sanções econômicas. A UE também é vital na construção de um sistema energético mais resiliente, incluindo um mercado interno que permite aos países comprar eletricidade e gás natural. A UE proveu bilhões de euros em ajuda para a Ucrânia reformar sua economia assolada por corrupção. 

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Tanto dentro da Otan quanto na UE houve menos desentendimentos do que o esperado. Ninguém questiona o princípio de sanções “massivas" contra a Rússia caso o país invada a Ucrânia. Depois de alguma relutância, o chanceler alemão, Olaf Scholz, passou a aceitar que o Nord Stream 2, um gasoduto entre Rússia e Alemanha, seria colocado em espera. Todos entendem o perigo de uma Rússia beligerante que busca redesenhar fronteiras internacionais da Europa pela força. 

E se a Rússia embarcar numa ação menor — algo que não chegue a constituir uma invasão? E como reagir a ações não militares em “zonas cinzentas”, como ciberataques e subversão? Biden afirmou descuidadamente que uma “pequena incursão” acarretaria uma resposta menor. Mas houve pouca discussão detalhada a respeito de tais eventualidades. Muitos aliados temem que isso poderia expor divisões; e um ataque total provavelmente não. 

Não ficaremos chocados

Macron vê a crise ucraniana como uma chance de promover novamente a ideia da “soberania europeia”. Alguns em Paris falam de um “momento refundador”. Em um recente discurso ao Parlamento Europeu, Macron festejou a crescente soberania da UE, definindo-a amplamente, da compra coletiva de vacinas pelo bloco à política monetária da zona do euro. Mas ele também falou em construir “um novo ordenamento de segurança e estabilidade” na Europa — em acordo com os europeus, os aliados da Otan que não integram a UE e os EUA — e propô-lo posteriormente para a Rússia. 

Não ficou claro o que Macron quis dizer. Alguns sugerem que ele está se referindo a coisas como a necessidade de um novo regime de controle de armas na Europa, depois da retirada de Trump, em 2019, do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário e da erosão de manobras para construção de confiança, incluindo avisos antecipados sobre grandes exercícios militares. A UE não tem nada com isso. Esses pontos foram, de qualquer maneira, incluídos nas recentes respostas dos EUA e da Otan à Rússia. O governo francês, ainda por cima, não quer ser arrastado para negociações de controle de armas nucleares com a Rússia, menos ainda que sua própria force de frappe seja questionada.

Os EUA estão de volta. Por quanto tempo?

Macron entende melhor que a maioria de seus antecessores a suspeição e o ressentimento que tudo isso pode causar. Ele se mostrou mais disposto a consultar outros membros da UE do que no passado. Jacques Chirac, que se ressentia da expansão da UE para o leste e a Europa Central, afirmou certa vez que governos dessa região deveriam “se calar”. Macron, em contraste, afirma que os “traumas" dos países que viveram sob o governo soviético deveriam ser compreendidos. 

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Notavelmente, os franceses não são os únicos a falar a respeito de soberania europeia. A ideia surge, por exemplo, no pacto de coalizão do governo de Scholz. Os estonianos juntaram-se à Iniciativa de Intervenção Europeia, um fórum liderado pela França para análise e planejamento estratégico. O Reino Unido também. A ideia de que os europeus devem se responsabilizar mais sobre si mesmos foi fortalecida não apenas pela brutalidade russa, mas também por dúvidas a respeito do comprometimento americano. 

Trump pode retornar ao poder em 2025. De qualquer modo, todos os presidentes americanos recentes têm querido se afastar da Europa e do Oriente Médio para se concentrar na competição com a China na Ásia. Realmente, alguns veem o novo esforço americano na Europa como um sinal não apenas para a Rússia mas também para a China, para dissuadi-la de atacar Taiwan. 

“Temos um Plano B sobre o que a UE faria se a Otan perdesse seu principal parceiro?”, pergunta Ischinger. “Espero que isso jamais aconteça, mas é uma questão séria de responsabilidade considerar essa hipótese.” Sem o hegemon americano, porém, é difícil visualizar os europeus forjando alguma resposta coerente. Decisões de política externa e segurança na UE requerem unanimidade. Prioridades de países diferentes divergem. Os do sul querem foco no Mediterrâneo e na imigração; os do leste priorizam a Rússia.

Além disso, instintos políticos e estratégicos também diferem. A França é a favor de ostentar poderio militar, mas receia uma Otan dominada pelos EUA; a Alemanha abraça a aliança mas, por razões históricas, receia o uso da força. E o Reino Unido deixou a UE completamente. “É o dilema europeu”, afirma um diplomata alemão. “A soberania europeia é impossível. Mas nunca foi tão necessária.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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