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Como as Forças Armadas do Afeganistão entraram em colapso tão rápido?

O rápido avanço do Taleban deixou mais claro que os esforços de 20 anos dos EUA para transformar as forças afegãs em um corpo de combate robusto e independente fracassaram

Por Thomas Gibbons-Neff e Fahim Abed
Atualização:

KANDAHAR - As rendições aparentemente estão acontecendo tão rapidamente quanto o Taleban pode viajar.

Nos últimos dias, as forças de segurança afegãs entraram em colapso em mais de 15 cidades sob a pressão do avanço do Taleban que começou em maio. Na sexta-feira, funcionários confirmaram que entre as cidades estavam duas das mais importantes capitais provinciais do país: Kandahar e Herat.

Combatentes do Taleban montam guarda ao longo de uma rua perto da Praça Zanbaq, em Cabul, em 16 de agosto de 2021. Foto: Wakil Kohsar / AFP

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A rápida ofensiva resultou em rendições em massa, helicópteros capturados e milhões de dólares em equipamentos fornecidos pelos Estados Unidos exibidos em grandes paradas pelo Taleban em vídeos de má qualidade feitos com celulares. Em algumas cidades, ocorriam pesados bombardeios de semanas de duração nos seus arrabaldes, mas o Taleban acabou derrotando suas linhas de defesa e os rebeldes entraram a pé encontrando pouca ou nenhuma resistência.

Esta implosão ocorre apesar do fato de os Estados Unidos terem injetado, em duas décadas, mais de US$ 83 bilhões em armas, equipamentos e treinamento nas forças de segurança do país.

Criar um aparato de segurança afegão era uma das partes fundamentais da estratégia do governo Obama, que procurava encontrar um meio de passar a responsabilidade pela segurança e deixar o país há quase uma década atrás. Estes esforços produziram um exército moldado à imagem do exército dos EUA, uma instituição afegã que supostamente deveria durar para além do fim da guerra americana.

Mas provavelmente acabará antes da saída total dos Estados Unidos.

Enquanto o futuro do Afeganistão parece cada vez mais incerto, uma coisa está se tornando extremamente clara. O esforço realizado pelos americanos ao longo de 20 anos para a reconstrução do exército afegão em uma força de combate independente fracassou, e este fracasso hoje está ocorrendo em tempo real à medida que o país descamba para o controle do Taleban.

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O fato de as forças afegãs chegarem a se desintegrar tornou-se evidente em primeiro lugar não na semana passada, mas há meses com uma série de perdas, antes mesmo de o presidente Joe Biden anunciar que os Estados Unidos se retirariam até 11 de setembro.

Combatente do Taleban equipa uma metralhadora enquanto realiza patrulha pelas ruas de Cabul. Foto: Wakil Kohsar / AFP

Isto começou nos postos espalhados em áreas rurais onde os soldados morriam de fome, não tinham mais munições e as unidades da polícia foram cercadas pelos combatentes do Taleban. Elas receberam livre trânsito desde que se rendessem, deixando para trás seu equipamento, dando lentamente aos insurgentes um controle cada vez maior das estradas e em seguida de distritos inteiros. À medida que as posições entravam em colapso, a queixa era quase sempre a mesma: Não havia suporte aéreo ou os seus fornecimentos de armas e alimentos tinham acabado.

Mas mesmo antes disto, a debilidade sistêmica das forças de segurança afegãs - que no papel chegavam a cerca de 300 mil pessoas, mas nos últimos dias não passavam de cerca de um sexto disso, segundo os funcionários - era visível. Este rombo pode ser atribuído a numerosas questões geradas pela insistência do Ocidente em criar um exército totalmente moderno, com todas as complexidades logísticas e de fornecimento implícitas, o que se revelou insustentável sem os Estados Unidos e os aliados da OTAN.

Soldados e policiais expressaram ressentimentos cada vez mais profundos contra a liderança afegã. Os funcionários muitas vezes fingiam não ver o que estava acontecendo embora estivessem perfeitamente conscientes de que o verdadeiro número do potencial humano das forças afegãs era muito inferior ao que constava nos livros, alterado pela corrupção e pelo sigilo tacitamente aceito.

Pessoas tentam pular o muro do Aeroporto Internacional Hamid Karzai para fugir do país após rumores de que países estrangeiros estão evacuando pessoas mesmo sem vistos, depois que o Talebanassumiu o controle de Cabul. Foto: EFE/EPA/STRINGER

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E quando o Taleban começou a adquirir força depois que os Estados Unidos anunciaram a retirada, só aumentou a convicção de que não valia a pena morrer combatendo nas forças de segurança - e combater para o governo do presidente Ashraf Ghani. Em entrevistas após entrevistas, soldados e policiais descreveram momentos de desespero e uma sensação de abandono.

Numa linha de frente na cidade de Kandahar, no sul do país, na semana passada, a aparente incapacidade das forças de segurança de repelir a devastadora ofensiva do Taleban resumia-se a batatas.

Após semanas de combates, uma caixa de papelão cheia de batatas viscosas constituiria a ração diária da unidade de polícia. Ela não havia recebido nada mais que batatas em várias formas ao longo de vários dias, e a fome e fadiga estavam acabando com a sua resistência.

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“Estas batatas fritas não irão manter as linhas de frente!” berrou um policial, amargurado pela falta de suporte que estavam recebendo na segunda maior cidade do país.

Na quinta-feira, a linha caiu, e na sexta-feira de manhã, Kandahar passava para o controle do Taleban.

Foi decidida então a consolidação das tropas afegãs para defender as 34 capitais provinciais do Afeganistão nas últimas semanas, à medida que o Taliban deixava de atacar as áreas rurais paravisar as cidades. Mas esta estratégia se revelou inútil porque os insurgentes tomaram cidade após cidade, capturando cerca da metade das capitais provinciais do país em uma semana, e cercaram Kabul.

“Eles estão tentando acabar com a gente”, disse Abdulhai, 45, um chefe de polícia que mantinha a linha de frente ao norte de Kandahar, na semana passada.

As forças de segurança afegãs sofreram mais de 60 mil baixas desde 2001. Mas Abdulhai não se referia ao Taleban, mas a seu próprio governo, que considerava tão inepto a ponto de fazer parte de um amplo plano para ceder território ao Taleban.

Os meses de derrotas aparentemente culminaram na quarta-feira, quando todo o quartel general de uma corporação do exército afegão - a 217ª - caiu nas mãos do Taleban no aeroporto da cidade de Kunduz, no norte do país. Os rebeldes capturaram um helicóptero de combate abatido. Imagens de um drone fornecido pelos EUA apreendido pelo Taleban circularam na internet com imagens de fileiras de veículos blindados.

O brigadeiro general Abbas Tawakoli, comandante do 217º corpo do exército afegão que se encontrava em uma província vizinha quando a sua base caiu, expressou os mesmos sentimentos de Abdulhai como a razão da derrota de suas tropas no campo de batalha.

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O que resta das forças do comando de elite, usadas para manter o território sob o controle do governo, são mandadas de uma província para a outra, sem nenhum objetivo claro e com poucos momentos de descanso.

Os grupos de milícias etnicamente alinhados que se destacaram como forças capazes de reforçar as linhas do governo também foram quase todos derrotados.

A segunda cidade a cair esta semana foi Sheberghan, no norte do Afeganistão, uma capital supostamente defendida por uma força formidável sob o comando do marechal Abdul Rashid Dostum, um caudilho infame e ex-vice-presidente afegão que sobreviveu aos últimos 40 anos de guerras por meio de negociatas e mudando de lados.

Na sexta-feira, Mohammad Ismail Khan, um destacado chefe militar e ex-governador, que resistiu aos ataques do Taleban no Afeganistão ocidental durante semanas e reuniu muitos em torno da sua causa para repelir a ofensiva insurgente, rendeu-se aos rebeldes.

“Estamos afundando na corrupção”, afirmou Abdul Haleem, 38, policial da linha de frente de Kandahar, no início deste mês. Sua unidade de operações especiais estava com a metade das forças - 15 de 30 pessoas - e vários dos seus camaradas que restavam no fronte estavam lá porque as suas aldeias haviam sido capturadas.

“De que maneira imagina-se que nós derrotaríamos o Taleban com esta quantidade de munições?” ele perguntou. A pesada metralhadora, para a qual a sua unidade dispunha de poucas balas, quebrou mais tarde naquela noite.

Na quinta-feira, não se sabia ao certo se Haleem ainda vivia e o que restava dos seus camaradas. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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