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Como é a vida social de quem prefere não se vacinar na Itália

Músico que apresentava-se por toda a Europa, agora não pode nem sequer embarcar num avião

Por Chico Harlan e Stefano Pitrelli
Atualização:

OSIGO, ITÁLIA - Após várias rodadas de regras mirando pessoas não vacinadas contra o coronavírus, a nova vida deste músico de câmara é irreconhecível em relação à anterior. Claudio Ronco apresentava-se por toda a Europa, mas agora não pode nem sequer embarcar num avião. Ele não pode se hospedar em hotéis, comer em restaurantes nem tomar café em algum bar.

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Mais importante, ele não pode tomar os táxis aquáticos necessários para circular em Veneza, onde viveu 30 anos — uma perda de mobilidade que recentemente fez com que ele pegasse seus dois valiosos cellos, trancasse seu apartamento veneziano e se mudasse com a mulher para uma casa de seus sogros, a uma hora de lá, nas montanhas. “Isolamento”, qualificou Ronco, no quarto dia consecutivo sem sair de casa.

Neste complicado estágio da pandemia de coronavírus, as vidas das pessoas não vacinadas estão em amplo fluxo, à mercê de decisões tomadas por toda parte, de tribunais a escritórios. Mas as vidas dessas pessoas estão se transformando mais dramaticamente em alguns países da Europa Ocidental, incluindo a Itália, onde governos estão reduzindo sistematicamente suas liberdades, enquanto começam a retornar o restante da sociedade para um estado de normalidade. 

E enquanto testagens regulares ainda eram permitidas como alternativa à vacinação até recentemente, essa opção foi agora removida em grande parte, à medida que países endurecem suas restrições. Para pessoas como Ronco, a escolha é ser inoculado ou encarar a exclusão.

Os músicos Claudio Ronco (D) e Emanuela Vozza decidiram não se vacinar e agora não podem se apresentar em público Foto: Photo for The Washington Post by Francesca Volpi

Ronco, de 66 anos, conhece pessoas que cederam, incluindo um colega músico com três filhos e hipoteca para pagar. Ele conhece outras pessoas que lutam para conseguir isenções difíceis de obter. Mas Ronco — um judeu ortodoxo especialista em música do século 18 que tende a desconfiar de tendências das massas — considera essa situação uma oportunidade de tentar resistir à crescente pressão. 

Suas economias estão diminuindo, mas não acabaram. Seus filhos estão crescidos. Sua mulher, Emanuela Vozza, também  violoncelista, também não vacinada, sente-se da mesma maneira que o marido. Então, dia após dia, a resistência dele continuou: um músico que já tocou no famoso Scala de Milão tem trabalhado, em vez disso, com Vozza editando gravações que eles fazem na sala de sua casa de campo, impossibilitados de se apresentar diante de uma plateia no futuro próximo.

“Mesmo numa praça pública isso seria impossível", afirmou Ronco, porque ele e seus espectadores ainda precisariam do Passe Verde, o cartão digital europeu de vacinação.

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Apontando para a floresta próxima da casa dos sogros, ele contou que se viu, em dias recentes, sonhando em dar um concerto numa clareira do bosque. “Eu poderia fazer uma chamada por Facebook e esperar que ninguém aparecesse para impedi-la”, afirmou Ronco.

Algumas pessoas não vacinadas que Ronco conhece mantêm-se discretas. Ronco entende por quê: suas decisões foram criticadas veementemente por políticos, virologistas e até pelo papa Francisco. Dias atrás, o primeiro-ministro italiano, Mario Draghi, afirmou que pessoas não vacinadas são responsáveis pela “maioria dos problemas que temos hoje”, ocupando desproporcionalmente leitos de UTI.

“Somos os terraplanistas”, afirmou Ronco, descrevendo a visão que predominou sobre pessoas como ele. “Sem nenhum respeito pelo sistema nem pela própria humanidade.”

Mas Ronco afirma que os líderes não levam em conta como suas manobras estão dividindo a sociedade em dois grupos, de aceitos e não aceitos. À medida que a Itália, ao longo de meses, estabeleceu suas regras para o uso do Passe Verde — primeiramente para refeições em locais fechados, depois em locais de trabalho, depois para o transporte público e muito mais — Ronco transformou sua página de Facebook em uma miscelânea de passagens da Torá, movimentos de cello e furiosas declarações a respeito da ingerência do governo. 

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Ele republicou testemunhos de vários céticos em relação às vacinas e, nesse processo, perdeu cerca de 1,5 mil de seus 5 mil seguidores, mas encontrou um fluxo de novas solicitações de amizade — presumivelmente de pessoas com pensamento parecido com o seu.

A maior parte desse agito não importa para ele. Mas uma consequência tocou um acorde doloroso. Ele era próximo de um fabricante italiano de cordas de instrumentos — “éramos como irmãos”, afirmou Ronco. Quando Ronco visitou a fábrica de cordas, meses atrás, seu amigo fez cumprir o uso de máscara, distanciamento e checagem de temperatura. Mas a acolhida, segundo sentiu Ronco, fora calorosa. Depois disso, poucos dias atrás, o fabricante de cordas terminou a amizade com Ronco na rede social.

Após a exigência do Passe Verde, Claudio Ronco e Emanuela Vozza decidiram se mudar para Osigo Foto: Photo for The Washington Post by Francesca Volpi

Para Ronco, isso significou mais uma forma de isolamento que se assomou. “A gente se conhece há 30 anos”, afirmou em voz baixa. “Não há pontes entre as duas margens.”

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A mais de uma hora da casa onde vive atualmente, no bairro que Ronco vivia em Veneza, os pequenos bares locais estavam cheios de clientes bebendo coquetéis baratos e petiscando cicchetti — depois de exibir seus Passes Verdes. Foi nesta cidade que Ronco criou os dois filhos que teve no primeiro casamento. Foi esta a cidade que se tornou seu lar, muito mais do que Turim, onde ele cresceu. Mas nesta noite, o apartamento de Ronco estava escuro, a única luz vinha da casa geminada do século 16 que pertence ao seu vizinho, Claudio Ambrosini, que se vacinou com três doses.

Ambrosini, compositor de música contemporânea, afirmou que considera Ronco um músico “corajoso”, criativo e disposto a rejeitar tendências. No passado, Ronco tocava cello em jantares que Ambrosini organizava. Mas na última vez que se viram, em uma rua de Veneza, Ambrosini perguntou a Ronco se ele finalmente havia se vacinado — e se decepcionou com a resposta. Ambrosini disse a Ronco que ele estava fazendo a escolha errada.

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Para Ambrosini, de 73 anos, a decisão por se vacinar é óbvia. Ele passou o primeiro ano da pandemia apavorado com a possibilidade de adoecer gravemente, enquanto planejava concertos que acabavam cancelados. A vacinação lhe trouxe alívio pessoal. Mas ele também considera inocular-se parte do contrato social. E afirma que as novas regras do Passe Verde são benevolentes, não distópicas. As regras ajudaram a convencer algumas pessoas resistentes, e agora estão entre os fatores que fazem do índice de vacinação na Itália um dos mais altos na Europa.

Vida mais viável

Ambrosini tem de apresentar seu Passe Verde para tomar o trem que o leva em quatro horas para seus concertos em Roma. Ele usa o passe para frequentar uma piscina municipal coberta três vezes por semana. Ele ainda não se sente completamente seguro; ainda usa duas máscaras. Mas o Passe Verde tornou sua vida em Veneza mais viável.

Em seu bairro, os prédios de tijolos rosados resistem há séculos e, de noite, os reflexos desses edifícios ondulam sobre a água, em constante mudança. Ambrosini afirmou que os contrastes no ambiente — duro e mole, permanente e fugaz — impregnam sua música. Ele disse que considera Veneza a cidade ideal para um músico.

O sol estava se pondo, e Ambrosini esticou o pescoço para olhar o lado de fora, na direção de uma ponte de madeira sobre o canal. “O apartamento do Claudio é para aquele lado”, afirmou o compositor. “Dá quase para vê-lo daqui.”

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Ronco é um narrador irrefreável, misturando história e religião até mesmo às questões mais diretas. Questionado sobre o ano em que seu cello foi fabricado, primeiro ele respondeu sucintamente: "1745". Mas a história estava apenas começando. Ele descreveu o apogeu da fabricação de instrumentos de cordas na Itália no século 18. Descreveu como seu instrumento foi de um país para outro, até ser apreendido por soldados nazistas e ser levado para o campo de concentração de Auschwitz, onde prisioneiros judeus eram forçados a tocar. Descreveu como o instrumento foi reparado após ser danificado durante o tempo da guerra e como, depois de adquiri-lo, ele se sentiu brevemente incerto a respeito de conjurar sons que reverberaram em um local assombrado.

Quando terminou sua história, ele levantou o arco. E logo o braço de Ronco bailava numa sala vazia, sob a poeira dourada que flutuava através dos raios de sol.

Assim começou o quinto dia consecutivo que ele não saía de casa.

Confrontado com perguntas diretas sobre por que não se vacinou, Ronco respondeu novamente com histórias — e muitas. Ao longo de horas, ele falou a respeito de possíveis consequências médicas da vacina e métodos alternativos para melhorar o sistema imunológico. Ele citou Vladimir Zelenko, um médico de Nova York que atende a comunidade de judeus hassídicos e ficou famoso por divulgar um tratamento experimental contra covid que incluía hidroxicloroquina. Ele se enfureceu com as novas divisões na sociedade e até invocou o passaporte ariano da era nazista.

Resistência

Mas Ronco também deixou claro que sua resistência ocorre naturalmente e se enquadra na narrativa que ele mesmo determinou para a própria vida: de um artista não convencional.

Quando era adolescente, ele trancou sua matrícula em um conservatório de elite em Turim, mudou-se para a Índia e passou vários  anos vivendo com um professor que lhe ensinou cítara e música não ocidental. Ele aplicou suas filosofias contra-corrente não apenas em sua música, mas também em sua saúde.

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Depois de sofrer dois ataques cardíacos, em 2007, afirmou ele, os médicos recomendaram um tratamento diário de 19 pílulas, que ele precisaria tomar pelo resto da vida. Mas Ronco afirmou que se "rebelou" e parou com com as pílulas subitamente, mesmo temendo que essa decisão pudesse matá-lo. Em vez disso, seu corpo recuperou o equilíbrio. “Eles queriam que eu passasse o resto da vida sentado num banco de praça alimentando pombos”, afirmou Ronco. “Eu não estava pronto para isso.”

Ronco afirmou estar comprometido com sua resistência e que isso consumiu tanto de sua identidade que é quase impossível imaginar uma reversão nesse curso. Ele disse que, mesmo se infectar-se — o único cenário em que uma pessoa não vacinada obtém o Passe Verde — ele não usará o passe.

“Isso não pode continuar assim”, afirmou Ronco depois de parar de tocar, quando Vozza entrou na sala. “(O governo) está pressionando tanto a gente”, afirmou Vozza. “Não cometemos nenhum crime. Mas não somos livres — não completamente livres.”

As restrições estão prestes a endurecer ainda mais. Nas próximas semanas, a Itália tornará os Passes Verdes obrigatórios também em bancos, lojas e agências de correio, de onde Ronco e Vozza às vezes enviam seus CDs aos fãs (nesses lugares — ao contrário de restaurantes, de bares e do transporte — a Itália ainda aceitará testes negativos). A partir de meados de fevereiro, a Itália também aplicará uma multa de € 100 a qualquer um com mais de 50 anos que não esteja vacinado. Ronco afirmou que pagará.

Há uma chance, supôs Ronco, que que as regras italianas relativas ao coronavírus sejam passageiras: de que o vírus seja categorizado como endêmico e as regras do Passe Verde sejam anuladas. Mas ele não tem certeza. O vírus continua sofrendo mutações. O estado de emergência continua sendo estendido. E ele e sua mulher poderiam ter de se esconder por meses, ou anos. Recentemente, Ronco começou a considerar mudar-se para outro lugar — um país que não tenha regras que restrinjam pessoas não vacinadas.

É apenas uma possibilidade remota, afirmou Ronco. Mas se acontecer, ele já pode planejar o primeiro trecho da viagem: eles teriam de deixar a Itália de carro. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL 

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