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Como governador de NY, Andrew Cuomo avançou a agenda feminista. Era só política?

Revelações de relatório que fez Cuomo renunciar mostram desconexão entre o governador progressista que defendia a igualdade de gênero e o comportamento pessoal que violava padrões que ele próprio havia sancionado

Por Lisa Lerer
Atualização:

O governador Andrew Cuomo costuma se gabar do trabalho que fez para mudar o mundo. Na terça-feira, 10, ele expressou surpresa ao ver que o mundo mudara sem ele.

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Ao anunciar sua renúncia, Cuomo contou como soubera - ao ler um relatório de 165 páginas que o acusa de assediar sexualmente quase uma dúzia de mulheres - que talvez não fosse o aliado feminista que imaginava ser.

"Na minha cabeça, nunca passei dos limites com ninguém, mas não percebi até que ponto os limites tinham sido redesenhados", disse ele. "Há mudanças geracionais e culturais que eu simplesmente não percebi totalmente - e deveria ter percebido".

Andrew Cuomo é acompanhado por filha e ex-assessora após discurso de renúncia. Foto: AP Photo/Seth Wenig

Na versão de Cuomo, ele também foi uma vítima: um político da velha guarda que, assim como o viajante do tempo que vai parar numa realidade desconhecida, de repente descobriu uma sociedade transformada pelo movimento MeToo. (Parece ter se esquecido de que tais expectativas básicas há muito tempo são ensinadas no jardim de infância).

O pedido de desculpas não-muito-arrependido do governador desencadeou uma onda de críticas de defensores e rivais políticos que há muito reclamam de uma lacuna entre suas realizações públicas em prol das mulheres e sua disposição de usar a retórica do feminismo para reforçar sua imagem pública ou conquistar vantagem política. As revelações do relatório os deixaram tentando entender uma desconexão ainda maior: entre o histórico de um governador progressista que defendia a igualdade de gênero e os direitos reprodutivos das mulheres e o comportamento pessoal que violava os padrões que ele próprio havia sancionado.

Mas, na terça-feira, não houve tal ambivalência na tentativa de Cuomo de explicar sua conduta, alegando ignorância quanto aos padrões sociais e às expectativas de responsabilidade.

Procuradora-geral de Nova York, Letitia James fala sobre investigação que gerou relatório com denúncias de ex-funcionárias contra Andrew Cuomo. Foto: Dave Sanders/The New York Times

"Com certeza ele sabia que esse tipo de comportamento nunca foi OK nem aceitável", disse a deputada estadual Linda B. Rosenthal, democrata de Manhattan, que disse que uma audiência da Assembleia sobre a redução dos aluguéis que ela estava presidindo explodiu em aplausos ao ouvir a notícia da renúncia de Cuomo. "A cultura mudou um pouco em Albany, mas seu comportamento nunca foi apropriado. Não dez anos atrás. Nem cinco anos atrás, nem na semana passada".

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Mas Rosenthal acrescentou: "O que mais ele vai dizer?".

Cuomo raramente ficava sem palavras ao promover suas credenciais feministas. Por anos, ele se lançou como um cruzado pelos direitos das mulheres, muitas vezes adotando a retórica do movimento MeToo.

"Deve haver tolerância zero ao assédio sexual em qualquer local de trabalho", escreveu ele no Twitter em 2018, "E nós podemos e iremos acabar com os segredos e as práticas coercitivas que por muito tempo permitiram o assédio".

Muitas vezes, ele também sugeria que ser pai de três filhas lhe dera uma empatia especial e uma percepção para as necessidades de mais da metade da população - como se homens sexistas só tivessem filhos homens.

"Deus me disse que eu era feminista quando me deu três filhas", disse ele em um comício pelo direito ao aborto em 2018. "Meu pai era feminista. Deus lhe disse que ele era feminista quando lhe deu catorze netos, treze meninas entre catorze netos".

Em seu discurso na terça-feira, Cuomo mais uma vez se referiu às suas filhas - suas "três joias", ele as chamou - mas de uma forma muito diferente, dizendo que estava magoado com o olhar em seus olhos e que queria que elas soubessem que ele jamais trataria "nenhuma mulher de maneira diferente da que eu gostaria que elas fossem tratadas".

O governador de Nova York, Andrew Cuomo, após anunciar sua renúncia na terça-feira, 10. Foto: AP Photo/Seth Wenig

"Seu papai cometeu erros, pediu desculpas e aprendeu com isso", acrescentou ele.

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No entanto, ao minimizar seu comportamento como algo antiquado, mas inocente, Cuomo também se apoiou em um manual político familiar aos políticos do sexo masculino acusados de assédio sexual: cite mudanças geracionais, um estilo "tátil" de fazer política, um desejo de se conectar com eleitores que supera qualquer consideração pelo seu espaço pessoal.

Em seu discurso, Cuomo pediu aos eleitores que se lembrassem de suas importantes conquistas progressistas, entre elas a igualdade no casamento, a proibição das armas de assalto e as mensalidades gratuitas para certos alunos de faculdade.

Notavelmente, não mencionou seu histórico sobre os direitos das mulheres.

Em 2012, Cuomo lançou uma "Agenda para a Igualdade das Mulheres" cujos dez pontos acabaram levando a um pacote de leis que auxiliam nas lutas contra a discriminação no local de trabalho, a desigualdade salarial e a violência doméstica. Seus esforços se intensificaram depois que Donald Trump foi eleito presidente e as eleitoras se colocaram na linha de frente da oposição ao novo governo. No dia em que as mulheres marcharam contra a posse de Trump, Cuomo anunciou que seu governo exigiria que os planos de saúde cobrissem os abortos medicamente necessários e a maioria das formas de contracepção sem nenhum custo - essencialmente salvaguardando as proteções que os republicanos estavam tentando revogar.

Em 2019, ele assinou a Lei da Saúde Reprodutiva, que consagrou o direito ao aborto no Estado de Nova York diante da possibilidade de que o caso Roe vs. Wade fosse derrubado, expandiu o acesso ao aborto e permitiu o aborto após 24 semanas para proteger a saúde da mãe ou no caso de o feto não ser viável. Ele também assinou uma legislação estendendo o estatuto das tipificações para estupro no Estado de Nova York.

E, em agosto de 2019, ele assinou uma ampla legislação contra o assédio sexual que, segundo seus apoiadores, colocaria as leis de Nova York entre as mais fortes do país.

Quando o movimento MeToo varreu a América, Cuomo emergiu como uma voz de clarim ao lado das vítimas. Ele se cercou de celebridades feministas e se aliou às líderes da Time’s Up, a organização fundada por mulheres de Hollywood para combater o abuso sexual e promover a igualdade de gênero. Ele protestou contra os republicanos por forçarem a nomeação do juiz Brett Kavanaugh para a Suprema Corte, pedindo que Kavanaugh fizesse o teste do polígrafo. E em 2019 ele já alardeava a legislação novaiorquina contra o assédio sexual, dizendo que tal legislação "honrava as mulheres que tiveram a coragem de dar um passo à frente e contar suas histórias".

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Mas, enquanto isso, de acordo com o relatório independente do procurador-geral do Estado, Cuomo estava se comportando na vida privada de maneiras que condenava na vida pública.

"O que mudou foi que a lei alcançou o entendimento comum de todos sobre o assédio sexual", disse Rita Pasarell, cofundadora do Grupo de Trabalho sobre Assédio Sexual, um grupo de ex-assessores legislativos de Albany que pressionou pela legislação. "O que não mudou é que as pessoas poderosas pensam que estão acima da lei. E eu acho que este é exatamente o ponto crucial do que está acontecendo com Cuomo".

É claro que foi a escolha de Cuomo por uma vice-governadora que levará Kathy Hochul a ser empossada para sucedê-lo, tornando-se a primeira governadora de Nova York, depois de 56 homens, e apenas a 45ª governadora de todos os Estados americanos.

Com a renúncia de Cuomo, Kathy Hochul assume o governo, tornando-se a primeira governadora de Nova York. Foto: REUTERS/Cindy Schultz

Hochul, que foi em grande medida ignorada por Cuomo, assumirá as rédeas do governo estadual em meio a uma pandemia ressurgente e na esteira de um líder que controlou rigidamente o governo estadual por mais de uma década.

Não se trata de algo atípico, seja na política ou nos negócios. Depois que os homens se demitem por causa de escândalos, muitas vezes se pede que líderes mulheres limpem a bagunça que ficou para trás.

O fenômeno é tão comum que tem um nome: glass cliff [algo como "penhasco de vidro"]. Derivada do glass ceiling [teto de vidro], a expressão se refere às mulheres que são alçadas a posições de poder quando as coisas vão mal e há maior risco de fracasso.

Alguns defensores dos direitos das mulheres e autoridades de Nova York dizem que não será o bastante simplesmente substituir Cuomo por uma mulher. Eles querem que os parlamentares de Albany avancem com o processo de impeachment e uma condenação, impedindo Cuomo de concorrer novamente a um cargo estadual.

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Shaunna Thomas, fundadora do UltraViolet, um grupo de defesa da igualdade de gênero, disse que, ao assistir ao discurso de Cuomo, sentiu que ele continuava tentando "transformar o feminismo numa arma para sua própria defesa".

"Este momento precisa marcar o início de sua responsabilização", disse ela sobre sua renúncia, "não o fim". / Tradução de Renato Prelorentzou.