Como Trump fez com que apoiadores doassem para sua campanha sem saber

Ferramenta no site de campanha do ex-presidente não deixava claro que pagamentos seriam recorrentes; autoridades dizem que caso é uma fraude

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Por Shane Goldmacher
Atualização:

NOVA YORK — Stacy Blatt estava em uma unidade de cuidados paliativos em setembro do ano passado, ouvindo o programa de Rush Limbaugh e seus alertas sobre como a campanha de Donald Trump precisava de dinheiro quando entrou na internet e doou tudo que podia doar: US$ 500.

Foi uma grande quantia para o homem de 63 anos que lutava contra um câncer vivendo em Kansas City com menos de US$ 1.000 por mês. Mas aquela contribuição única — sua primeira doação política — rapidamente se multiplicou. No dia seguinte, mais US$ 500 foram retirados de sua conta, então mais US$ 500 na semana seguinte e nas outras semanas até outubro, sem o conhecimento dele. Isso até que a conta de Blatt fosse zerada e congelada.

O ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump Foto: Andrew Caballero-Reynolds / AFP

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Quando seus cheques começaram a voltar, ele ligou para o irmão, Russell. O que os dois descobriram é que US$ 3 mil foram sacados da conta pela campanha de Trump em menos de 30 dias. Eles ligaram para o banco e pensaram terem sido vítimas de fraude. “Parecia que era uma fraude”, disse Russell Blatt.

Mas o que os Blatts acreditaram ter sido um erro bancário foi, na verdade, um esquema intencional para aumentar os ganhos da campanha de Trump e da empresa que processava as doações online, Win Red. Diante de uma iminente falta de fundos e bem atrás das arrecadações dos democratas, a campanha começou, em setembro, a programar doações semanais, por padrão, até a eleição de novembro.

Os doadores precisavam ler as letras pequenas nas regras do site e fazer manualmente a retirada da lista de doações semanais. Com a proximidade da eleição, essa ferramenta ficou mais escondida, segundo uma investigação do New York Times. Foi criado ainda um segundo item, conhecido como “a bomba de dinheiro”, que já vinha preenchido antecipadamente e dobrava o valor da contribuição.

A tática arrebatou muitos apoiadores de Trump — aposentados, veteranos, enfermeiras e mesmo veteranos da política. Logo, bancos e empresas de cartão de crédito começaram a ser inundados por reclamações dos próprios apoiadores do então presidente sobre as doações que não queriam ter feito, por vezes de milhares de dólares.

“Bandidos!”, disse Victor Amelino, um californiano de 78 anos que doou US$ 990 para Trump em setembro pelo WinRed. O valor foi cobrado mais sete vezes, somando quase US$ 8 mil.

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“Eu estou aposentado, não consigo pagar todo esse dinheiro”, declarou.

Reembolsos

A magnitude do dinheiro envolvido é chocante. Nos últimos dois meses e meio de 2020, a campanha de Trump, a Comissão Nacional Republicana e suas contas relacionadas emitiram mais de 530 mil reembolsos, no valor de US$ 64,3 milhões. 

Todas campanhas fazem reembolsos pelos mais variados motivos, incluindo para pessoas que doam acima do limite permitido. Mas a soma da operação de Trump foi bem maior do que a efetuada por Joe Biden e as comissões democratas, que fizeram 37 mil reembolsos, somando US$ 5,6 milhões.

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As doações recorrentes incharam os cofres de Trump em setembro e outubro, justamente quando suas finanças de campanha estavam se deteriorando. Ele usou os milhões de dólares que levantou depois da eleição, com o argumento de levar adiante suas acusações infundadas de fraude, para ajudar a pagar pelos reembolsos. Na prática, o dinheiro que ele precisou pagar de volta foi um empréstimo sem juros de seus apoiadores, no momento mais importante da corrida eleitoral.

Profissionais de marketing usam há tempos ferramentas como as opções previamente escolhidas em formulários e páginas para fazer com que os consumidores façam compras contra sua vontade, como assinaturas de revistas. Mas advogados que trabalham com os direitos do consumidor dizem que usar essa prática no calor de uma campanha à Presidência, na escala em que foi aplicada, tem ramificações muito mais sérias.

“É injusto, é antiético e é inapropriado”, disse Ira Rheingold, diretor-executivo da Associação Nacional de Defensores do Consumidor.

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Harry Brignull, que trabalha com modelos de experiência do consumidor e que criou o termo “padrões obscuros” relacionado a práticas de marketing digital manipuladoras, disse que as técnicas da equipe de Trump são um clássico do gênero “design de enganação”. “Deveria estar nos livros como um exemplo do que você não pode fazer”, disse.

Estrategistas políticos, profissionais do meio digital e especialistas em finanças dizem não se lembrar de uma quantidade tão grande de reembolsos. Trump, a Comissão Nacional Republicana e contas relacionadas pagaram aos seus doadores no ciclo eleitoral mais dinheiro do que todos os candidatos e comissões do Partido Democrata combinados. 

De forma geral, 10,7% do volume arrecadado pela campanha republicana no WinRed foram devolvidos. Na campanha de Biden, o ActBlue, a plataforma democrata para arrecadações, reembolsou apenas 2,2% das doações.

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Para chegar a essas conclusões, o New York Times revisou documentos da Comissão Federal Eleitoral relativos às campanhas de Trump e Biden, compilando uma base de dados de reembolsos diários. Também foram entrevistados doadores da campanha de Trump, especialistas financeiros e funcionários de instituições financeiras.

Um padrão logo surgiu. Os doadores diziam que queriam doar uma ou duas vezes e só depois viram seus extratos bancários e faturas de cartão de crédito mostrando que eles estavam doando muitas vezes. Alguns como Stacy Blatt, que morreu de câncer em fevereiro, entraram com ações junto aos seus bancos e operadores de cartão. Outros buscaram os reembolsos diretamente com a WinRed, que geralmente pagava os valores para evitar disputas judiciais mais custosas.

A WinRed afirmou que cada doador recebe ao menos um e-mail de informações sobre valores a serem debitados, e que é “excepcionalmente fácil” para as pessoas pedirem seu dinheiro de volta. 

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“A WinRed quer que os doadores estejam felizes e dá atenção especial ao atendimento ao consumidor”, afirmou Gerrit Lansing, presidente da WinRed. “Os doadores são a base das campanhas do Partido Republicano.” Ele ainda afirmou que os democratas também usam o modelo de doações recorrentes.

Jason Miller, porta-voz de Trump, minimizou as queixas de fraude e os US$ 122,7 milhões em reembolsos pagos pela campanha de Trump. Ele disse que relatórios internos mostraram que 0,87% das transações da WinRed foram questionadas por empresas de cartão de crédito.

“O fato de termos uma taxa de queixas menor do que 1% em todas as doações, apesar de levantar mais dinheiro dos pequenos doadores do que qualquer campanha na história, é louvável”, afirmou Miller.

Doação automática

As práticas agressivas de arrecadação de Trump não pararam depois de sua derrota. A campanha manteve os débitos semanais até o dia 14 de dezembro, levantando milhões de dólares para seu novo comitê de ação política, o Save America. Em março, Trump pediu aos seus apoiadores que lhe mandassem dinheiro, e não ao tradicional aparato partidário, deixando claro que ele quer permanecer como o centro gravitacional da arrecadação digital republicana.

O pop-up amarelo apareceu no portal de doações digitais de Trump por volta de março de 2020. O texto era simples: “faça com que essa doação seja feita mensalmente”. Ali havia uma opção já marcada de forma prévia. Isso foi bem mais agressivo do que o feito pela campanha de Biden — ali, os responsáveis dizem que raramente usaram opções marcadas previamente para automaticamente repetir as doações. A exceção era em páginas que explicitamente pediam aos apoiadores para que doassem de forma automática.

Mas para Trump, essa prática era só o começo. Em junho, a campanha estava trabalhando em uma segunda opção pré-marcada, para que os doadores fizessem automaticamente uma contribuição extra, a “bomba de dinheiro”. Um teste foi feito no aniversário de Trump, 14 de junho, e os resultados surpreenderam. Aquele dia, um domingo qualquer, se tornou o dia com mais doações na história da campanha.

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Ronna McDaniel, presidente da Comissão Nacional Republicana, falou à Fox News sobre o fato sem mencionar como ele foi obtido. “Republicanos estão pensando melhor em termos digitais”, declarou.

Até então, as campanhas de Biden e Trump apresentavam taxas de reembolso semelhantes: 2,18% para Trump e 2,17% para Biden. Mas depois do dia do aniversário de Trump, a taxa de Biden quase não mudou, ficando em 2,24%, enquanto a do republicano explodiu, chegando a 12,29%. No começo de setembro, a campanha ficou ainda mais agressiva.

Ela mudou a linguagem do site, fazendo com que a opção marcada previamente apontasse uma repetição semanal das doações. Com isso, alguns doadores estavam fazendo, indiretamente, cerca de seis pagamentos em apenas um mês: a doação original, a “bomba de dinheiro” e quatro doações semanais.

“Você não percebe até que tudo esteja em andamento”, afirmou Brue Turner, de 72 anos, cuja doação de US$ 1.000 no começo de outubro se transformou em um gasto de US$ 6 mil no dia da eleição. Eles receberam um reembolso de US$ 5 mil depois da votação.

Ao mesmo tempo, pessoas que recebiam as reclamações em empresas de cartão de crédito em em bancos perceberam um aumento nas queixas contra a campanha de Trump e a WinRed. “Começou a ficar insano”, disse um investigador de fraudes no banco Wells Fargo.

A campanha continuou ainda a modificar a página onde havia a opção de repetir as doações. E conforme os problemas financeiros se tornaram mais agudos, entender o que estava marcado se tornava mais complexo.

Em meados do ano passado, a campanha de Biden começou a arrecadar mais do que Trump, e o presidente estava furioso. Por meses, anos até, seus assessores lhe contaram a história de que ele havia construído um colosso financeiro. Então por que, Trump queria saber, ele não tinha mais anúncios meses antes da eleição em estados cruciais como o Michigan? A pressão estava aumentando para arrancar mais dinheiro de seus apoiadores.

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Talvez em nenhum outro lugar a pressão era mais aguda do que na lucrativa operação digital da campanha. Ali era o domínio de Gary Coby, um estrategista em seus 30 e poucos anos, que escondia do público sua imensa influência na operação do presidente. Veterano da eleição de 2016, ele tinha a confiança e respeito de Jared Kushner, genro de Trump e supervisor informal da campanha.

Isso significava uma otimização e uma experimentação quase sem fim, muitas vezes no limite das fronteiras tradicionais. A equipe de Trump usou muitas estratégias para ampliar as doações, incluindo o aumento no número de e-mails, que chegaram a uma média de 15 por dia em outubro.

Ação conjunta

As operações de Trump e da WinRed estavam alinhadas desde a criação da plataforma, e a campanha à reeleição correspondeu à maioria dos negócios da empresa no último ciclo, quando processou quase US$ 2 bilhões em pagamentos. Ao contrário da ActBlue, a WinRed tem fins lucrativos, e fica com 30 centavos de cada doação, mais 3,8% do valor doado. Ela ainda recebeu cerca de US$ 118 milhões de comissões federais, e mesmo descontadas as despesas, os lucros devem ter sido elevados.

O uso de opções marcadas previamente não é algo novo na política, e a WinRed afirma que apenas estava usando táticas que a ActBlue adotou anos antes — procurada, a empresa disse que estava abandonando a prática, “a menos que grupos explicitamente peçam para fazer as contribuições recorrentes”.

Como um todo, a WinRed foi apontada pelos republicanos como um dos grandes sucessos no ciclo eleitoral de 2020, e em um comunicado de outubro do ano passado, a empresa declarou ser “uma plataforma confiável e reconhecida” para as doações do partido. 

Mas para alguns apoiadores do ex-presidente, como Ron Wilson, a companhia não passa de uma fraude. Wilson, um aposentado de 87 anos, fez uma série de contribuições que, em suas contas, somariam US$ 200. Segundo os dados oficiais, foram mais de 70 doações, que retiraram das contas de Wilson cerca de US$ 2,3 mil. Apesar das críticas à empresa, ele diz que Trump não tem culpa alguma.

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Logo depois da eleição de novembro, dois candidatos republicanos ao Senado na Geórgia usaram a prática das opções pré-marcadas em suas campanhas — em questão de dias, David Perdue e Kelly Loeffler viram seus números dispararem. 

Agora, a WinRed está exportando as ferramentas aprimoradas na corrida presidencial para todo o Partido Republicano. E depois do primeiro discurso de Trump já fora da Casa Branca, sua nova operação política mandou uma mensagem por e-mail: “vocês sentiram minha falta”. Ali, os apoiadores seriam direcionados a uma página de doações, com as opções de pagamentos recorrentes já marcadas. Naquele dia, Trump arrecadou US$ 3 milhões.

 

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