'Completamente violada': mulheres descrevem apalpadas e intimidações do governador de Nova York

Novo relato de uma policial estadual reforça acusações contra Andrew Cuomo – e indica como seu círculo íntimo permitiu que tal conduta se repetisse

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Por Matt Flegenheimer
Atualização:

NOVA YORK - O governador Andrew Cuomo pôs o dedo na nuca da policial, de pé, atrás dela, dentro do elevador de seu gabinete em Manhattan, e traçou o caminho de sua coluna com duas palavras narrando a ação: “Ei, você”.

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Às vezes, ele fazia perguntas - Por que ela não usava vestido? Por que querer se casar se, depois de um tempo, o impulso sexual diminui? Ele poderia beijá-la?

Outras vezes, ele fazia declarações: disse que sua namorada ideal precisaria “aguentar a dor”. Disse que a policial, de pouco menos de 30 anos de idade, era “muito velha” para ele. E disse para ela nunca comentar nada sobre suas conversas.

A policial ficou mais desconfortável depois de um evento em Long Island, no ano de 2019. Enquanto segurava uma porta aberta para o governador, ela sentiu a palma da mão em seu umbigo, pressionando em direção ao lado direito do quadril, onde ela guardava a arma. “Eu me senti completamente violada”, ela disse aos investigadores. “Mas, você sabe, estou aqui para fazer meu trabalho”.

Há muito se sabia que trabalhar para o governador Andrew Cuomo podia ser desgastante e, muitas vezes, humilhante. Mas um relatório de 165 páginas divulgado na terça-feira pelo procurador-geral do Estado de Nova York é, ao mesmo tempo, a mais completa descrição de seus delitos executivos e uma explicação meticulosa de como essa conduta era tolerada.

Ser mulher e viver na órbita de Cuomo, sugere o relatório, era viver “a dicotomia entre o medo e o flerte”, um espaço onde o chefe podia alternar entre o íntimo e o intimidador e onde seus assessores mais antigos pareciam operar com um foco singular na reputação e no conforto pessoal do governador.

Relatório diz que, enquanto Cuomo assediava sexualmente mulheres dentro e fora de seu governo, grandes esforços foram feitos para protegê-lo de si mesmo Foto: Shannon Stapleton/REUTERS

Na verdade, o relatório diz que, enquanto Cuomo assediava sexualmente mulheres dentro e fora de seu governo, grandes esforços foram feitos para protegê-lo de si mesmo: a Câmara executiva se recusou a relatar as alegações de assédio de uma assistente executiva, Charlotte Bennett, à agência estatal responsável e, em vez disso, fez de tudo para estabelecer uma prática que evita que certas funcionárias fiquem sozinhas com o governador.

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Segundo o relatório, a composição de seu círculo também pretendia minimizar a exposição de Cuomo e acentuar uma cultura de medo em torno da ideia de confrontá-lo, com acesso concedido principalmente àqueles que tinham “uma lealdade pessoal comprovada”.

Nesse círculo de Cuomo se encontravam funcionários públicos, como Melissa DeRosa, sua principal assessora, e conselheiros externos, como seu irmão Chris Cuomo, âncora da CNN, que não tem nenhuma obrigação formal para com o Estado. O resultado, escreveram os investigadores, foi que “os funcionários que não fazem parte deste círculo interno de pessoas leais legitimamente acreditariam - e de fato acreditaram - que qualquer queixa ou alegação sobre o governador seria tratada por pessoas cujo principal interesse é proteger o governador”.

As opções disponíveis para as vítimas de Cuomo eram tão sombrias, mostraram entrevistas com testemunhas, que até mesmo a indesejável atenção sexualizada poderia ser vista como “a melhor alternativa para a experiência tensa, estressante e ‘tóxica’ no gabinete executivo”.

Mais frequentemente, a beligerância desenfreada e o desprezo às pessoas faziam “parte do acordo” para qualquer subordinado do governador, sugeriu um veterano do governo estadual em um e-mail citado pelos investigadores.

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“Há várias categorias de vítimas neste problema: em primeiro lugar, estão as mulheres que vivenciaram essas coisas com ele”, escreveu outra funcionária sênior para si mesma, em março de 2021, enquanto as acusações contra Cuomo aumentavam. “Em segundo lugar, e não reconhecidos, estão os funcionários. Somos quase sempre pessoas boas que se matavam (...) para cumprir a agenda dele - para a sua glória política e pelo sentimento de que ele tomaria decisões tendo o serviço público como objetivo principal. Eu me sinto enganada por tudo isso”.

Na terça-feira, Cuomo continuou com sua postura evasiva e desafiadora, negando quaisquer irregularidades, qualificando a investigação de tendenciosa e politicamente motivada e mencionando sua própria experiência como membro de uma família com violência sexual.

“Eu entendo essa dinâmica”, disse ele, acusando as pessoas que o atacaram de diminuir o sofrimento das “verdadeiras vítimas de assédio sexual”.

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Mas, em algumas passagens do relatório, o depoimento do governador para os investigadores serve apenas para reforçar a sensação, difundida por todo o documento, de que ele construiu um local de trabalho com a intenção de protegê-lo da responsabilidade por seu próprio comportamento.

Ele afirma que uma assistente executiva que o acusou de avanços indesejados foi “quem começou com os abraços”. Diz que foi Bennett quem levantou o assunto das namoradas em potencial. E insiste que nunca teve a intenção de deixar ninguém desconfortável e que não sabia que isto vinha acontecendo.

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Os investigadores consideraram suas negações “inventadas”. E não foram os únicos.

“Muito me enoja que Andrew Cuomo - um homem que entende a sutil dinâmica do poder e dos jogos de poder melhor do que quase qualquer pessoa no planeta - esteja dando essa desculpa esfarrapada de não saber que ele deixava as mulheres desconfortáveis”, escreveu a funcionária sênior para si mesma naquele mês de março de 2021, após o governador ter falado publicamente sobre as alegações de Bennett pela primeira vez. “Ou ele sabia exatamente o que estava fazendo (o mais provável) ou é tão narcisista que achava que todas as mulheres queriam esse tipo de abordagem (desculpa esfarrapada)”.

Tamanha era a distorção mental que muitas vezes acometia as pessoas do mundo de Cuomo que permeava seu escritório uma espécie de inevitável guerra psicológica - com ele, com os colegas, consigo mesmo - como se o desconforto coletivo o alimentasse naquele trabalho extenuante.

“Por um lado, ele normaliza todo esse comportamento inapropriado e assustador, como se você não devesse reclamar,” Alyssa McGrath, uma assistente executiva, disse aos investigadores. “Por outro lado, você vê as pessoas serem punidas e insultadas se você faz qualquer coisa que discorde dele ou de seus principais assessores”.

Ana Liss, ex-assessora do gabinete executivo, que sentiu que tinha sido tratada como “um colírio para os olhos”, disse que se apresentara para descrever o que considerava transgressões menores porque acreditava que a “tolerância para com esses micro flertes” criara uma estrutura de permissão para Cuomo “agir de determinada maneira mais séria com mulheres quando estava a portas fechadas”.

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Às vezes, Cuomo parecia misturar um instinto de sobrevivência política com a expectativa de que aqueles ao seu redor também cuidariam dele.

Ele chegava a dar esses comandos pessoalmente, como no caso de seus flertes agressivos com a policial - instruindo-a: “Não conte a ninguém sobre nossas conversas”, de acordo com o relato dela.

Mas, quase sem falha, o governador tinha reforços.

A policial disse aos investigadores que esperava que sua história “validasse essas mulheres”, acusando um governador “vingativo” de má conduta. Mas ela disse que ainda teme retaliação por fazer a denúncia, mesmo sem se identificar publicamente.

Ela se lembrou de como um comandante de segurança havia reagido ao ouvir Cuomo perguntar por que a policial não estava usando vestido enquanto ela o escoltava para um evento.

Depois que saiu do veículo, nervosa com a conversa, a policial recebeu uma mensagem do comandante, aconselhando discrição. “Essa conversa fica entre nós”, dizia a mensagem.

E de fato ficou, até que não ficou mais. / Tradução de Renato Prelorentzou 

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