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‘Conservadores adotaram ideias da direita radical’, diz cientista político holandês

Para Cas Mudde, essa mudança na política mundial possibilitou a ascensão da direita e do populismo

Foto do author Rodrigo Turrer
Foto do author Renato Vasconcelos
Por Rodrigo Turrer e Renato Vasconcelos
Atualização:

Há 30 anos, o cientista político holandês Cas Mudde estuda movimentos de ultradireita. Em sua última obra, The Far Right Today (A Ultradireita Hoje, sem edição no Brasil), lançada no fim de 2019, Mudde fala sobre a recente ascensão do populismo de direita no mundo. Ele divide a ultradireita em dois grandes grupos, a extrema direita, que rejeita completamente a democracia, e a direita radical, que opera dentro das instituições democráticas, ainda que se coloque contra valores fundamentais desse sistema, como a separação de poderes e os direitos das minorias.

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Para ele, a grande mudança na política mundial que possibilitou a ascensão da direita e do populismo foi quando partidos conservadores tradicionais começaram a encampar as ideias da direita radical em seu discurso convencional. Nesta entrevista ao Estadão, ele fala sobre esse processo, sobre a narrativa ao redor do globo que criminaliza as minorias, e também sobre o Brasil.

Em seu livro 'The Far Right Today', você argumenta que há quatro ondas de políticos da direita radical. Qual é a diferença entre a Frente Nacional de Jean-Marie Le Pen, Donald Trump ou, digamos, Jair Bolsonaro?

A diferença não está tanto no que a direita radical oferece. Na raiz, não se pode dizer que Trump seja menos radical e extremista que Bolsonaro ou Le Pen. A diferença é o papel da extrema direita dentro do contexto político mais amplo no que chamo de terceira onda, da qual Jean Marie Le Pen é um ótimo exemplo. Na época, a extrema direita estava obtendo sucesso eleitoral com suas opiniões, mas os atores políticos eram vistos como desafiadores, como corpos estranhos. E, em geral, mantidos fora do sistema político, o que é radicalmente diferente de hoje. Não apenas as ideias da extrema direita se tornaram a corrente principal, e são compartilhadas por alguns atores convencionais; os próprios atores radicais fazem parte do mainstream. Tanto Bolsonaro quanto Trump são ou foram os presidentes, certo? Têm força total. Isso faz com que eles mudem as políticas diretamente. Le Pen nunca chegou perto do poder. Portanto, a grande diferença entre a terceira onda radical desta quarta onda da extrema direita não está tanto na extrema direita em si, mas sim no caminho que a extrema direita segue. O ponto principal é que há países nos quais a extrema direita não está no governo, mas suas ideias estão sendo defendidas por partidos convencionais, pelos principais atores políticos. É a transformação de partidos conservadores em partidos de direita radical. Os conservadores encamparam ideias da direita radical. É o caso do primeiro-ministro holandês, ou do primeiro-ministro austríaco, que são líderes dos principais partidos conservadores de seus países, mas que expressam muitas ideias semelhantes às da direita radical: ver a imigração como um problema para a identidade nacional e a segurança nacional. E o caso dos sociais-democratas dinamarqueses, que estão aplicando políticas que vêm diretamente do manual do radical. 

Para analista, políticos como Trump levam ideias da extrema direita ao mainstream Foto: Stephen Zenner/AFP

Você pode resumir as diferenças que vê entre a extrema direita no século 20 e a extrema direita no século 21?

Nos anos 1980, 1990, a principal coisa que fizemos como estudiosos da extrema direita foi tentar entender por que alguém votaria nesses partidos. A ideia era que esses partidos eram uma patologia. Eles expressavam ideias que estavam completamente desconectadas das ideias principais do mundo. Eram ideias compartilhadas apenas por uma pequena porcentagem da população. Começamos a estudar um pouco o papel que a própria direita radical desempenhou em seu sucesso, mas olhamos muito pouco para as consequências da ascensão da direita radical. Em parte, porque ainda não estavam tão claras. Isso me fez perceber que, embora tenhamos uma quantidade enorme de pesquisas acadêmicas sólidas sobre partidos de direita radical na Europa, isso se situa principalmente na terceira onda, entre 1980 e 2000, em que a direita radical teve um sucesso razoável, mas ainda era relativamente nova e estranha. Ainda teorizamos principalmente sobre a direita radical em partidos de oposição e protesto, enquanto partidos como o Fidesz na Hungria e o BJP na Índia estão no poder por dois ou três mandatos. Ao mesmo tempo, assumimos certos tabus, como o anti-semitismo e o racismo, que parecem estar desaparecendo rapidamente. Então comecei a olhar particularmente para o que esses partidos fazem quando são o governo. 

Qual foi seu efeito sobre outros partidos na democracia liberal? Eles têm que transformar o sistema, têm que mudar a si próprios. Todas essas coisas simplesmente não eram tão relevantes nas décadas de 1980 e 1990.

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E qual é a diferença?

Em The Far Right Today, desenvolvi minha ideia de uma quarta onda de política de extrema direita do pós-guerra, que começou mais ou menos no novo século e é caracterizada por extrema heterogeneidade, bem como integração e normalização na vida política. Uma das poucas certezas na literatura era que os partidos de extrema direita não poderiam ter sucesso eleitoral. E isso mudou. A questão era: como o Aurora Dourada, da Grécia, ou o Partido Popular Nossa Eslováquia, que são abertamente racistas, ou pessoas como Donald Trump e Jair Bolsonaro, que flertam abertamente com medidas antidemocráticas, chegam ao poder? Por que esse tabu final não é mais o tabu final? Acho que é isso que está faltando. Quando pensamos na extrema direita, pensamos em partidos de protesto, mas o que vemos em países como Hungria e Polônia é que esses partidos, quando no governo, são recompensados por certos eleitores pelo que fazem. Já nas décadas de 1980 e 1990, nunca pensamos nessa possibilidade porque esses partidos nunca foram ao poder. O Partido Republicano, não apenas sob Donald Trump, é muito mais nativista, autoritário e populista do que, digamos, o Pim Fortuyn (LPF) da Holanda costumava ser ou o Partido do Progresso da Noruega (FrP) é, mas poucas pessoas (ainda) consideram o partido uma “direita radical populista”. Na Europa Oriental, as distinções são extremamente difíceis, particularmente na esteira da chamada "crise dos refugiados" de 2015-16, quando a maioria dos principais partidos da região assumiram, pelo menos, posições tão nativistas e islamofóbicas quanto o núcleo populista e radical de partidos de direita na Europa Ocidental, como a Liga Italiana e a antiga Frente Nacional. Ao mesmo tempo, alguns partidos de extrema direita entraram nos parlamentos. Primeiro, a Golden Dawn na Grécia e mais tarde, Kotleba-People’s Party Our Slovakia (L’SNS) na Eslováquia, enquanto alguns partidos flertam com características de extrema direita, como o racismo aberto (por exemplo, o Partido do Povo Conservador da Estônia, EKRE).

Há pontos em comum no discurso deles?

Sim, há uma narrativa ao redor do globo que criminaliza as minorias. Quem são essas minorias varia de acordo com desenvolvimentos nacionais. E então, na própria Europa Ocidental, os novos imigrantes do Oriente Médio que atravessam o Mediterrâneo são as minorias, em outros lugares são os romenos, os judeus. Mas existe essa ideia de que a maioria é homogênea e pensa exatamente a mesma coisa. E que o líder é a voz deles. E que existe outro grupo que é minoritário e não é autêntico. Eles não fazem parte do povo. E que nos últimos anos eles tiveram um poder desproporcional, não necessariamente eles próprios. Não é a conspiração anti-semita, onde são as minorias que estão manipulando tudo. Agora é mais do isso: os partidos têm ouvido demais os interesses minoritários porque são marxistas ou porque tentaram fazer funcionar uma União Europeia ou os EUA, quem quer que seja. Embora as especificidades sejam diferentes no Brasil e na Holanda, o mecanismo é o mesmo. O mecanismo é sempre como nosso país não é mais democrático porque o establishment tem ouvido apenas as minorias em vez de ouvir a nós do povo, e o povo é homogêneo e tem sua voz dentro de nós e será guiada pelo líder.

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Por que devemos entender Trump como parte de uma perigosa “quarta onda” de políticos de direita radical?

Trump é um caso problemático, assim como Bolsonaro, similares no sentido de que eles não têm ideologias claras e bem elaboradas, não têm ideologias abrangentes, e não representam partidos que tenham essas ideologias, o que os torna diferentes de Marine Le Pen, por exemplo, ou de Matteo Salvini, que são líderes de partidos que têm uma ideologia bem desenvolvida de extrema direita. Mas quando você olha para líderes como Trump e como Bolsonaro, essas questões-chave ideológicas subjacentes às suas políticas são as mesmas: populismo, autoritarismo, nativismo. Esse nativismo é menos central no Brasil talvez do que nos Estados Unidos, mas até um certo ponto existe também: a ideia de que as pessoas reais são as que produzem, e há os parasitas que se aproveitam das pessoas reais. E então há parasitas no topo, e parasitas embaixo. No discurso de Bolsonaro, esses parasitas na base são muitas vezes racializados, e trazem comentários racistas sobre afro-brasileiros. Podemos perguntar qual a ideologia de Bolsonaro? Ele não tem. Ele está governando de maneira completamente oportunista, com pitadas de nativismo, autoritarismo, e populismo como partes centrais da maneira que ele fala e da maneira que ele governa. Trump era o mesmo. É por isso que eles fazem parte dessa direita radical. Mas eles são um pouco diferentes do radical tradicional, que está imerso em um movimento ideológico e subcultural. O interessante sobre Bolsonaro e Trump é que eles não estão realmente conectados a nenhum movimento específico.

Quais são as principais características compartilhadas da extrema direita e as diferenças de contexto entre Europa, EUA e países da América Latina, como o Brasil?

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Nativismo, autoritarismo, populismo é a essência de todos eles. Até certo ponto, particularmente o nativismo funciona de forma muito diferente em vários países. Na Europa Central Oriental, os “outros” eram ciganos, e eles eram domésticos, certo. Eles não vieram de nenhum outro lugar. Na Europa Ocidental, são muçulmanos, os imigrantes. Nos Estados Unidos são imigrantes mexicanos, assim como afro-americanos que vivem lá. Na América Latina o nativismo não é tão dominante quanto na América do Norte e na Europa. Mas não significa que não esteja lá. É só porque inicialmente, como a imigração não é tão grande, isso não aconteceu muito. Mas eles ainda têm o mesmo tipo de compreensão da nação. E a nação é até certo ponto racializada, e então o autoritarismo não é uma ideia antidemocrática necessariamente. É essa ideia de que o Estado precisa fazer cumprir a ordem por meio da disciplina, da lei e da ordem. E que tudo, no fim, é realmente apenas questão de lei e ordem. Drogas, divórcio, homossexualidade, é tudo uma questão de resolver problemas através das leis. É uma visão muito específica de ver problemas. Os problemas não são gerados pelas condições sociais, eles existem porque as pessoas querem uma sociedade corrompida pelo marxismo cultural e etc. Mas se você reprimir com força suficiente, eles desaparecem. 

O termo “iliberalismo” é menos conhecido do que termos como “populismo” ou mesmo “populismo nacional”. Você acha que ele captura alguns elementos importantes para o estudo da extrema direita no século 21?

Se você vê o liberalismo essencialmente como uma ideologia que vê as pessoas em primeiro lugar como indivíduos autônomos, que deveriam ter liberdade total do Estado, e etc, de um ponto de vista cultural, isto é claramente o oposto da maior parte da extrema direita. Particularmente no caso de Bolsonaro e Trump, e para muitos no sul da Europa. Então, essa ideia de que você pode simplesmente fazer o que quiser, ser gay, fazer um aborto. No entanto, o liberalismo econômico, que faz parte da mesma ideologia, onde os indivíduos estão no seu melhor se o Estado ficar de fora da vida delas, nem Jair Bolsonaro nem Trump eram contra isso. Se eles aplicaram ou não políticas que podem ser prescritas como neoliberalismo é um ponto diferente, mas ambos são capitalistas definitivos, com um argumento muito individualista. Então eu não diria que Trump tinha uma visão não liberal nesse sentido. Acho que o iliberalismo costuma ser usado para definir a democracia iliberal, o que realmente significa um sistema democrático que não fornece direitos a minorias, separação de poder. Eu acho que é apenas uma maneira errada de falar sobre isso, porque o iliberalismo é em si, apenas não liberalismo, e o não liberalismo se estende bem à social-democracia, à democracia cristã. Quer dizer, essencialmente eles também não são liberais porque vêem o indivíduo como parte de um coletivo maior. Então eu acho que é impreciso. A outra coisa é que muitos desses líderes adorariam ser chamados de iliberais porque o liberalismo se tornou um termo muito negativo em muitos países.

Verdade. No Brasil nas últimas, nas últimas eleições, ouvimos muito sobre os candidatos que se apresentam como conservadores nos costumes e liberais na economia.

Ironicamente, era disso que se tratava o neoconservadorismo. Como isso começou nos anos 1980, com os neoconservadores dos EUA e do Reino Unido, a primeira geração. Agora, quando pensamos em neoconservadores, pensamos em George W. Bush, com uma política externa agressiva. Mas os primeirosneoconservadores dos anos 1980 e 1990 fizeram exatamente essa combinação de conservadorismo sócio-cultural com liberalismo econômico. Você vê elementos disso em Trump, embora ele tente adaptar isso com um nacionalismo econômico. Eu vejo essa forma de neoconservadorismo não tanto na extrema direita hoje, mas mais na política mainstream. No governo consrevador da Holanda, talvez Boris Johnson, embora ele seja muito fluido em suas políticas. Nesse sentido, o neoconservadorismo não é tão dominante como costumava ser.