Coronavírus rouba rituais de adeus das famílias a seus parentes

Nos EUA, serviços fúnebres na maioria das igrejas, sinagogas, templos e mesquitas foram suspensos por tempo indeterminado obedecendo às ordens de distanciamento social que visam conter o avanço do vírus

PUBLICIDADE

Por Tracey Tuffy e Andrea Salcedo
Atualização:

NOVA YORK - Alguém segurou a mão de Stephen Solomon enquanto ele morria. Mas não foi sua filha. O filho jogou a terra com a pá como é costume em um enterro judeu. Mas sua mulher, doente com coronavírus e em quarentena em casa, não estava lá.

Ninguém ouviu a guarda de honra militar executar o toque de silêncio para Solomon, veterano da Guarda Costeira. E ninguém aceitou a bandeira americana perfeitamente dobrada, oferecida em nome de uma nação agradecida. Nada disso aconteceu.

Nos Estados Unidos, o coronavírus roubou milhares vidas. E ele também roubou das famílias os rituais que seguem a morte.

O caixão de Courtney Clarke, vítima da covid-19, é levado de funeral em New Jersey Foto: Todd Heisler/The New York Times

PUBLICIDADE

Os serviços fúnebres na maioria das igrejas, sinagogas, templos e mesquitas foram suspensos por tempo indeterminado obedecendo às ordens de distanciamento social que visam conter o avanço do vírus. Os velórios, quando acontecem, são limitados a cinco - às vezes dez - parentes mais próximos.

As honras militares ao lado do túmulo foram suspensas. Muitos cemitérios permitem apenas um funcionário da funerária, um religioso e um representante da família nos enterros.

Os serviços não essenciais, como as lojas de flores, estão fechados, e as tumbas não têm praticamente nenhum adorno. Em algumas famílias judias, a shiva, o período de luto de uma semana de duração, ocorre em aplicativo de videoconferências.

Solomon, de 72 anos, morreu no mês passado em New Jersey enquanto estava internado por causa do coronavírus. “Levou embora meu pai”, disse Bernard Solomon, de 39 anos, referindo-se ao coronavírus. “Mas levou também a possibilidade de nos confortamos, de estarmos entre nós."

Publicidade

Apenas cinco pessoas puderam estar presentes no enterro, e o cemitério pediu que eles levassem suas próprias pás para o gesto simbólico final. Não havia nenhuma para emprestar. “Há uma parte de mim que só quer gritar: Não é justo”, disse o filho.

Jenny Solomon com seu pai, Stephen Solomon, em 1998 Foto: Handout via The New York Times

À medida que os necrotérios dos hospitais vão se enchendo e a prefeitura de Nova York estuda planos de contingência que incluirão o enterro de alguns mortos no campo de uma olaria, os operadores dafunerárias estão mais ocupados do que nunca.

“Estamos sobrecarregados”, disse Shawn’te Harvell, o gerente da Smith Funeral Home, em Elizabeth, New Jersey, que recebeu chamados para 38 funerais na semana passada, seis vezes o número normal.

Enquanto tentam administrar esse aumento, as funerárias também lutam para se manter atualizadas com as normas que mudam rapidamente, alterando as antigas tradições.

“Andamos pra cima e pra baixo diariamente”, disse Maryellen McLaughlin, diretora executiva da Funerária McLaughlin, de Jersey City, em New Jersey. “É uma montanha russa emocional para a pobre família.”

Shawn'te Harvel, diretora da funerária Smith Funeral Home emElizabeth, New Jersey Foto: Todd Heisler/The New York Times

Jake Thomas, de 90 anos, morreu no mês passado. O coronavírus não teve nada a ver com isso. Mas teve tudo a ver com o motivo pelo qual seus 18 netos e 23 bisnetos não puderam assistir à sua cerimônia fúnebre em New Jersey.

Cinco membros da família tiveram permissão para se reunir por um breve momento e se despedir na funerária, falou a neta mais velha, Aasiyah Muhammad. Somente uma pessoa pôde descer do carro no cemitério para assistir ao enterro do avô, que era veterano do Exército.

Publicidade

Aasiyah, de Irvington, New Jersey, tampouco pôde participar. “É como enterrar um estranho”, acrescentou. “Ninguém estava presente."

Muitas funerárias estão recorrendo a soluções digitais - ‘live streaming’ ou serviços de gravação para que os familiares possam participar à distância ou olhar mais tarde. Muitos estão trabalhando com as famílias para planejar cerimônias fúnebres quando a ameaça do coronavírus abrandar.

“De certa forma, é como um médico que não consegue realizar uma cirurgia em alguém que precisa dela”, disse Ellen McBrayer, a porta-voz da Associação Nacional de Diretores de Funerárias, que administra duas funerárias fora de Atlanta, no centro do Cinturão da Bíblia.

Patrick J. Kearns, que opera uma funerária em Long Island e três em Queens, no centro da pandemia emNova York, disse que a maior parte dos funerais que ele organiza é de pessoas que vieram das Índias Ocidentais, Guianas, Jamaica e de Trinidad e Tobago. Os serviços funerários dessas comunidades costumam atrair grandes famílias.

“Todo o processo do luto praticamente foi interrompido” ele disse, acrescentando: “Como podemos dizer às famílias que elas só têm a permissão de levar os parentes mais próximos quando a família é composta de 37 pessoas?”

Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças inicialmente instruíram as funerárias a limitar a participação das últimas homenagens a 50 pessoas. No dia 29 de março, o número despencou para 10.

Entretanto, alguns Estados, como New Jersey, praticamente acabaram com este tipo de reuniões. Muitas funerárias convidam os parentes mais próximos para entrarem somente para uma breve despedida do parente.

Publicidade

Armando Velarde (E) diz adeus a sua mãe, Aida Julia Velarde, em um cemitério em Linden, New Jersey Foto: Todd Heisler/The New York Times

A polícia obriga os cidadãos a obedecer rigorosamente a essas normas, e acabou com os grandes funeraisem Nova York e em New Jersey.

“A ausência de serviços religiosos tradicionais e do conforto e da estrutura que eles podem oferecer enquanto as famílias tentam encontrar algum sentido na morte, tem um efeito devastador”, disse Annmarie Rudolph, diretora de funerais na N F Walker da Funerária de Queens, no bairro de Woodhaven.

O que aumenta a dor dos sobreviventes, afirmou, são as normas que impedem a maioria das pessoas de visitar seus entes queridos nos hospitais e nas casas de repouso para idosos.

“Eles sequer podem vê-los nos últimos momentos de sua vida,” acrescentou Annmarie. “E agora nem sequer podem vê-los na morte."

É a angústia de Jenny Solomon, que perdeu o pai. “A última vez que o vi ele estava apavorado enquanto o colocavam em uma ambulância”, disse Jenny.

Seu pai havia contraído provavelmente o coronavírus durante um exercício de treinamento de segurança do seu templo, dirigido por um instrutor que posteriormente testou positivo para o vírus, contou o filho.

Jenny disse que ela estava assombrada pelo pensamento dos últimos momentos de seu pai.  

Publicidade

“Uma enfermeira, particularmente, foi fantástica, ela ficou segurando a sua mão”, contou. “Estou furiosa por não ter sido eu."

Ela cuidou do pai enquanto ele ficou em casa, expondo-a ao vírus também. Com isso, nem ela nem a mãe, que está se recuperando da doença, puderam assistir ao funeral.

Ela não está ansiosa por olhar o vídeo que seu irmão fez do enterro.“Somos só eu e minha mãe”, ela disse na semana passada, quando a mãe se encontrava em quarentena voluntária, “e posso esquecer um pouco disso, porque não parece real”.

'Enorme solidão'

O Hari P. Close II, presidente da Associação Nacional dos Diretores de Funeral e Agentes funerários, um grupo de cerca de 1.500 funerárias tradicionalmente afro-americanas, disse que as barreiras ao luto criadas pelo vírus poderão levar a um adiamento insalubre do processo de luto.

A sua funerária em Baltimore oferece serviços online, e também uma oportunidades para as pessoas que não podem entrar na funerária de gravar uma lembrança do lado de fora. As lembranças são transferidas para discos e são dadas às famílias.

No entanto, é impossível reproduzir a intimidade de um último beijo ou do abraço de uma pessoa que compartilha da nossa dor. “Há uma enorme solidão. As pessoas estão enterrando seus filhos, pais e não há ninguém para ampará-los nesse momento."

Publicidade

As funerárias, como os hospitais e as casas para idosos, também lutam com a escassez do material de proteção exigido para transportar e lidar com os restos mortais. Muitos corpos deixam os hospitais em sacos plásticos especiais, duplamente selados.

Para as funerárias, até o último ato - a entrega das cinzas aos parentes dos pacientes que morreram por causa da covid-19 - exige extremo cuidado, disse Annmarie.

“Devemos informá-los de que estão conosco e que podemos entregá-las na porta da sua casa e avisar: ‘Estou aqui. Estou na sua porta’ ”, ela disse, “e ir embora”. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.