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Crianças ainda são mortas e feridas no conflito colombiano, cinco anos após acordo de paz

Em meio à ausência do Estado, ao recrutamento agressivo por grupos armados e ao poder de fogo dos militares, jovens são os alvos mais vulneráveis de uma guerra interna que está longe de acabar

Por Julie Turkewitz e Sofía Villamil
Atualização:

PUERTO CACHICAMO, Colômbia - Aos 13 anos, ela deixou sua casa para se juntar à guerrilha. Agora, aos 15, Yeimi Sofía Vega está em um caixão, morta durante uma operação militar ordenada por seu governo.

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Algumas das crianças mais novas de sua cidade, Puerto Cachicamo, lideraram seu cortejo fúnebre, balançando pequenas bandeiras brancas enquanto passavam pela escola, com seus livros mofados e bancos quebrados, pelo posto de saúde fechado e por suas pequenas casas de madeira.

“Não queremos bombas”, gritavam as crianças, marchando por uma estrada empoeirada até o cemitério. “Queremos oportunidades.”

Quase cinco anos depois de a Colômbia assinar um acordo de paz histórico com seu maior grupo de guerrilha, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), a guerra interna do país está longe do fim.

Cidades remotas como Puerto Cachicamo ainda não viram as escolas, clínicas e empregos que o governo prometeu no acordo. Milhares de combatentes dissidentes das Farc voltaram à batalha, ou nunca largaram as armas, e estão lutando contra os rivais pelo controle de mercados ilícitos. Os assassinatos em massa e o deslocamento forçado são, novamente, situações corriqueiras.

E os jovens - presos entre um Estado muitas vezes ausente, o recrutamento agressivo de grupos armados e o poder de fogo dos militares - são mais uma vez os alvos mais vulneráveis do conflito.

Javier Cortazar abraça sua filha, Andrea, durante cerimônia em homenagem a duas meninas mortas durante um ataque a um campo rebelde Foto: Federico Rios/NYT

Isso ficou evidente neste mês, quando o governo bombardeou um acampamento rebelde na tentativa de apanhar um poderoso líder dissidente das Farc conhecido pelo pseudônimo de Gentil Duarte. O acampamento estava repleto de jovens recrutados pelo grupo - e a operação matou pelo menos dois menores, incluindo Yeimi Sofia.

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O ministro da Defesa, Diego Molano, culpou os rebeldes pelas mortes, ressaltando que eram eles que transformavam adolescentes em alvos do governo ao convertê-los em “máquinas de guerra”.

A frase teve forte repercussão na sociedade colombiana, com alguns dizendo que Molano estava sendo grosseiro, embora correto, e outros dizendo que era essa retórica - caracterizar as crianças pobres como inimigas do Estado, em vez de vítimas de seu abandono - que estava mais uma vez levando os jovens para a guerrilha.

O recrutamento de crianças foi uma característica comum da guerra de décadas do país. Agora, os rebeldes estão de volta, circulando pelas praças da cidade, pendurando cartazes de recrutamento, dando dinheiro para adolescentes, encantando as meninas e, em seguida, persuadindo-as a se juntar à luta.

O bombardeio também levantou questões críticas de responsabilidade em um país que ainda luta com atrocidades cometidas por todos os lados durante um conflito que deixou pelo menos 220 mil mortos: as autoridades sabiam que havia menores no acampamento? O ataque foi realizado mesmo assim?

Uma sala de aula emPuerto Cachicamo, Colômbia;recrutamento de crianças foi uma característica comum da guerra de décadas do país Foto: Federico Rios/NYT

Puerto Cachicamo fica às margens do rio Guayabero, na interseção da Cordilheira dos Andes, a região amazônica e as vastas planícies do país. Uma de suas principais características é a quase total ausência do Estado.

Antes do acordo de paz, as Farc dominavam a região, punindo pequenos criminosos, cobrando impostos e organizando equipes de trabalho, tudo sob ameaça de violência. E também costumavam recrutar jovens.

Em 2016, quando as Farc assinaram o acordo de paz e se desmobilizaram, seus combatentes partiram em uma frota de barcos pelo rio Guayabero.

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Três meses depois, os dissidentes das Farc chegaram, disse Jhon Albert Montilla, 36 anos, pai de outra menina morta no bombardeio militar, Danna Liseth Montilla, 16 anos.

A última vez que Montilla viu sua filha foi em 1º de janeiro, disse ele. Danna, que fez 16 anos em outubro, era uma aspirante a jornalista que havia começado a trabalhar com o Voces del Guayabero, um grupo de cidadãos documentaristas.

Custodio Chaves mostra quarto de sua filha, Karen, recrutada pelas guerrilhas aos 13 anos de idade Foto: Federico Rios/NYT
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Assim que a pandemia começou, o governo intensificou a erradicação da coca na área, gerando protestos de moradores que viam seu sustento em perigo. Os cinegrafistas do Voces correram para esses lugares.

Enquanto os militares se chocavam com os manifestantes - atirando em vários civis durante diferentes confrontos - Danna se sentou em uma pequena loja, um dos poucos lugares em Puerto Cachicamo com eletricidade confiável, editando os vídeos e publicando-os na internet por meio de uma conexão fraca.

“Mas o desejo dela era estar conosco em campo”, disse Fernando Montes Osorio, cinegrafista do Voces que foi baleado em um confronto e ficou com a mão mutilada.

Como Danna era jovem, ele a manteve na sala de edição, disse ele. Mas eles conversavam com frequência. “Ela estava focada na ideia de que as coisas tinham que mudar.”

Então, certo dia em janeiro, ela desapareceu.

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Essa não foi a primeira vez, desde o acordo de paz, que o governo matou menores em uma operação militar.

Propaganda das FARC é avistada em Nova Colômbia, vizinha à cidade de Puerto Cachicamo Foto: Federico Rios/NYT

O bombardeio de outro acampamento de dissidentes das Farc, em 2019, matou oito crianças e adolescentes. Guillermo Botero, então ministro da Defesa, foi forçado a renunciar meses depois, quando um senador da oposição revelou que ele havia ocultado do público as idades das vítimas.

O escândalo foi um grande teste ao recém-empossado presidente, Iván Duque, um conservador cujo partido se opôs ferozmente ao acordo de paz.

Críticos afirmam que sua estratégia pós-acordo tem foco excessivo em eliminar conhecidos líderes criminosos e não se esforça o suficiente na implementação de programas sociais que deveriam abordar as raízes da guerra.

Apoiadores pedem paciência. “Não somos capazes de reverter 56 anos de guerra em apenas dois anos”, afirmou Miguel Ceballos, o mais graduado comissário de Duque para paz, em uma entrevista no ano passado.

Ao todo, 12 pessoas morreram nas operações deste mês, e ainda não se sabe quantas delas eram menores.

O bombardeio matou 10 pessoas, de acordo com os militares, e outras duas morreram em confrontos posteriores ao ataque. A maioria dos mortos identificados até agora pelas autoridades federais de saúde tem entre 19 anos e 23 anos.

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Não está claro se o bombardeio de março foi legal, afirmou René Provost, professor de direito internacional da Universidade McGill.

Sob o direito internacional, crianças que se juntam a grupos armados são capazes de se tornar combatentes e podem, portanto, ser alvo de ataques realizados legalmente por governos.

Mas a lei também exige que atores estatais investiguem se menores estão presentes em alvos em particular e, se estiverem, os governos devem buscar estratégias alternativas com objetivo de poupar vidas de crianças ou considerar se o alvo é importante o bastante para justificar mortes de adolescentes.

Nicol Vega, irmã de Yeimi Sofia, acende velas em seu caixão Foto: Federico Rios/NYT

“O direito humanitário impõe como dever limitar ataques contra crianças-soldado”, afirmou ele, “e se esse dever é ignorado, isso abre a porta para a responsabilização criminal daqueles que tomaram as decisões”.

Na situação mais extrema, se um governo fracassa em investigar e punir responsáveis, o caso deve ser assumido pelo Tribunal Penal Internacional.

Em uma entrevista, o ministro da Defesa, Diego Molano, afirmou que o ataque atendia aos parâmetros do direito internacional.

Ele se recusou repetidamente a informar se os militares sabiam que menores estavam no acampamento, acrescentando que é geralmente “muito difícil” determinar as idades das pessoas presentes em um alvo militar.

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Mas ele também afirmou que a presença de crianças não impediria, necessariamente, uma operação.

“O que criminosos como Gentil Duarte têm de levar em conta é que eles não podem continuar a recrutar jovens esperando que isso limite o uso legítimo da força pelo Estado”, afirmou ele ao jornal El Espectador. “Crianças devem ser protegidas quando apropriado, mas a força também deve ser usada.” / Tradução de Augusto Calil e Romina Cácia.

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