Crime no Nepal reflete crise social e política

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Por Agencia Estado
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Eles foram cremados bem depressa. O rei do Nepal, Birendra, sua mulher e seus dois filhos foram cremados sobre uma fogueira de lenha de santal, às margens do rio Bagmati. Nem sequer houve tempo para as autópsias - e isso torna ainda mais sinistro esse drama obscuro vivido no sábado pelo pequeno reino, situado em meio aos picos mais altos do mundo, entre eles o Everest, com seus 8.846 metros. Como explicar racionalmente que o príncipe-herdeiro Dipendra, filho do rei Birendra e um rapaz considerado amável, tenha liquidado com uma arma automática seu pai, sua mãe e todos os que pôde encontrar ao seu redor, sem esquecer de tirar sua própria vida? O fato mórbido é que, como o príncipe Diprenda não morreu imediatamente, foi logo nomeado rei, de acordo com a legislação do país. Assim, depois de sua façanha de ?killer", Dipendra tornou-se rei por quarenta e oito horas, mas isso de nada lhe serviu, pois estava em coma. Se relembramos assim os episódios da tragédia nepalesa, é para mostrar que este extraordinário episódio histórico não pode ser explicado por teorias políticas, sejam elas as de Karl Marx ou de Tocqueville. Não admira que se tenha ido buscar as "chaves" desse fato no exemplo de alguns reinos primitivos: para alguns, a matança de Katmandu se parece às matanças que os príncipes gregos perpetravam de bom grado para nutrir as peças dos grandes autores trágicos como Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Outros buscam exemplos mais modernos, mas igualmente loucos, nos gélidos furores das peças de Shakespeare. Comentários Os comentários que nos chegam de Katmandu não contribuem para esclarecer os fatos. Começam dizendo que o príncipe-herdeiro assassino, Dipendra, de 29 anos, estava nervoso porque sua mãe não aceitava seu casamento com uma jovem da alta sociedade educada na Índia. Em conseqüência disso, o príncipe teria decidido matar todo mundo, inclusive a si próprio. Mais tarde, uma nova versão foi divulgada pelo Palácio, onde se instalou o novo rei, Gyanendra (tio do príncipe assassino). Segundo Gyanendra, o príncipe Dipendra seria apenas um grande azarado: teria manejado uma arma automática e esta teria começado a disparar sozinha, girando com uma precisão tão diabólica que matou a todos. Enfim, os astrólogos também intervieram com sua explicação: uma antiga profecia advertia que a atual dinastia, que reina sobre o Nepal desde 1768, seria enlutada por uma tragédia se, por infelicidade, um príncipe-herdeiro tivesse a idéia estúpida de se casar antes dos 35 anos. Ora, o príncipe Dipendra tinha apenas 29 anos. Por aí podemos ver como a astrologia é uma ciência rigorosa. Rei impopular Entretanto, levado por esse rio de sangue familiar, quem sobe ao trono é o irmão do rei assassinado, Gyanendra. Trata-se de um homem pouco popular. Na família, ele representava os partidários da "monarquia absoluta". Ao contrário, seu irmão assassinado, o rei Birendra, que era menos reacionário, menos absolutista. Aliás, foi o rei Birendra que, em 1990, outorgou uma Constituição um pouco mais democrática ao Nepal, depois de grandes distúrbios populares. Na época, o príncipe Gyanendra (hoje, o novo rei) se opôs violentamente a seu irmão Birendra. Assim se explica a impopularidade do novo rei Gyanendra. Além disso, o novo rei tem um filho considerado uma catástrofe - um tal Paras, famoso pela velocidade ao volante de seus carros (o gosto pela velocidade ao volante é um traço freqüente entre os filhos de ditadores, como no caso da Coréia do Norte, etc). Por este motivo, o príncipe Paras é odiado pelos nepaleses. Há alguns meses, um abaixo-assinado coletou 500 mil assinaturas no Reino, exigindo que Paras seja privado de seu título de Alteza Real por atropelar e matar um cantor muito popular. O crime ficou impune. Hoje, a presença deste filho exaltado aumenta o temor dos nepaleses. "O filho de nosso novo rei é um louco. Como os deuses vão reagir? O que vai acontecer a todos nós?" Enfim, mesmo que este Reino - que em 560 viu nascer o príncipe Gautama Sidharta, mais conhecido sob o nome de Buda - seja parecido com os antigos reinos mágicos ou mitológicos, nem por isso deixa de enfrentar os desafios político-ideológicos de nosso tempo. Em primeiro lugar, é preciso não esquecer que um verdadeiro ódio opõe o minúsculo Nepal (23 milhões de habitantes) ao seu gigantesco vizinho, a Índia (mais de um bilhão de pessoas). Desde ontem, centenas de homens de cabeças raspadas em sinal de luto, levaram às ruas de Katmandu slogans hostis à Índia. Em dezembro do ano passado, um ator indiano fez declarações arrogantes que provocaram manifestações violentas e vários mortos em Katmandu. Esta manhã, os turistas indianos começaram a deixar a cidade. No centro, jovens nepaleses queimaram jornais indianos. Também no Nepal existem partidos políticos. Desde as últimas eleições, a Câmara é dominada por uma maioria comunista; mas existe algo ainda mais inquietante: no Oeste do Reino age uma possante guerrilha maoísta que já se responsabilizou por milhares de mortes. Ora, é preciso saber que o Nepal, encravado entre a Índia e a China, tem um PIB de 10 dólares per capita, é um dos países mais pobres do mundo. Isso quer dizer que este país, abalado pela matança no Palácio Real, está no meio de um grande furacão.

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