Crise de abastecimento se agrava na Venezuela e reduz apoio a Chávez

A uma semana de referendo, pesquisa mostra que 48,9% rejeitam a reforma constitucional, apoiada por 39,4%

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Por Lourival Sant'Anna
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Um grande boneco do presidente Hugo Chávez se sustenta sobre um prédio do Mercal, o Mercado de Alimentos conveniado com o governo, no bairro popular do Petare, um dos maiores de Caracas. Quem passa de carro pela via elevada que corta o bairro não vê, mas o Mercal do Petare está fechado. "Estão faltando os produtos essenciais", desculpa-se o dono do mercado, antes de sair apressado numa moto. "Estão ocorrendo muitas compras nervosas, por causa da especulação de preços e porque há votação e ninguém sabe o que vai acontecer." O Chávez de camisa vermelha e ar triunfal sobre o edifício vazio do Mercal é uma metáfora de seu regime bolivariano, que se prepara para entrar no décimo ano de existência. Nos "mercales" que se mantêm abertos, os gerentes, exasperados com as perguntas dos fregueses atrás de produtos de primeira necessidade, escrevem cartazes como o que se lê num estabelecimento da Candelaria, bairro de classe média de Caracas: "Não há produtos do Mercal. Não há frango, mercearia, leite, açúcar. Não sei quando chega." Na parede, pôsteres com fotos de Chávez de mãos dadas com crianças trazem uma mensagem distinta: "Quando a esperança nos dá a mão, a Venezuela renasce." Cada dia mais vazios, os mercales venezuelanos começam a se parecer com uma versão moderna das sombrias "bodegas" cubanas, encarregadas de vender os produtos distribuídos pelo Estado, em contraste com os fartos e reluzentes supermercados privados. "Vá procurar o leite com o Chávez", zomba Carmen Rosas, de 57 anos, dona de uma creche no Petare. "Esse homem está nos fazendo passar fome." Seu marido, Angel Hurtado, um pequeno comerciante de 61 anos, diz que o desabastecimento não o fez mudar de idéia sobre o presidente: "Nunca gostei do Chávez. Desde o começo, a pobreza aumenta, enquanto os que estão com ele no governo ficam mais ricos. Carne virou luxo. Chávez é um embusteiro, que só quer ajudar os outros países." Mas os efeitos políticos do desabastecimento são visíveis. Nas vindas anteriores do repórter do Estado à Venezuela, a última delas há dois anos, na eleição para a Assembléia Nacional, a polarização entre os "barrios", como se chamam as áreas de favelas e habitações populares, e as "urbanizaciones", os bairros de classe média e alta, era praticamente absoluta, com os pobres apoiando Chávez e os ricos o odiando. Agora, em barrios com longa tradição esquerdista, como Petare e Palo Verde, no extremo leste de Caracas, já se ouvem críticas ao presidente que se apresenta como pai dos pobres. O instituto de pesquisas Datanálisis, talvez o mais confiável da Venezuela, registrou a mudança de humor. Há seis meses, 65% dos habitantes acreditavam que o desabastecimento era culpa da ganância dos empresários, comprando a versão de Chávez. Hoje, segundo o instituto, 46% já responsabilizam o governo pela escassez de alimentos, e apenas 31% atribuem o problema aos empresários. "O povo não é bobo e se dá conta de que em Bogotá, Lima ou São Paulo há leite, e em Caracas, não", diz o diretor do Datanálisis, o economista Luis Vicente León. É difícil prever até que ponto o desabastecimento afetará Chávez no referendo do próximo domingo, quando estará em jogo a mudança de 69 artigos da Constituição, incluindo a introdução da reeleição ilimitada do presidente e uma nova forma de propriedade socialista. Há os que têm razões para ser inabalavelmente pró-Chávez. "O governo não tem nada a ver com isso, são os especuladores", explica Marina San Juan, de 58 anos, saindo do Mercal da Candelaria. Além de trabalhar como auxiliar no Tribunal Supremo de Justiça (dominado por chavistas), ela faz direito na Missão Sucre, curso superior alternativo criado por Chávez. Há os que se beneficiam com a escassez, como o camelô Andrés Romero, de 42 anos, que na manhã de sexta-feira vendia 15 ovos por 7 mil bolívares, quando o preço tabelado é 8.100 por 24 ovos (US$ 1 vale 2.144 bolívares, no câmbio oficial, e 5.500, no paralelo). O mesmo acontece com o quilo do leite em pó, congelado em 10.130 bolívares e vendido nas ruas por 30 mil, e com o quilo do açúcar, tabelado em 1.300 e vendido no mercado paralelo a mais de 3 mil. "A vida melhorou com Chávez, pelo menos enquanto ele nos deixar trabalhar na rua", disse Romero, que tem um ponto numa avenida do Petare há quatro anos, e tira de 30 mil a 40 mil bolívares por dia. "Claro que com a falta nos supermercados (a nossa situação) melhorou, porque aqui a gente sempre vende." Há também quem tenha uma visão ponderada, como a aposentada Ana Francisca Fuldar, de 73 anos. A falta de produtos incomoda Ana Francisca, que trabalhou a vida toda na merenda de uma escola, e percebe que o leite vendido por 4.700 bolívares no Mercal, quando há, é de pior qualidade. "Antes não havia tanta matança", acrescenta ela, referindo-se ao aumento da criminalidade, uma outra queixa constante. Por outro lado, Ana Francisca, que recebe um salário mínimo (614 mil bolívares) por mês, está contente porque os aposentados hoje ganham mais, e o benefício é pago pontualmente no dia 20. No último 1º de maio, Chávez deu aumento de 20% no mínimo. "Estou indecisa", confessa Ana Francisca - os olhos verdes de sua origem alemã compondo com as feições indígenas -, na frente de uma prateleira do supermercado Cada, no Petare, em que potes de chocolate em pó ocupam parcialmente o lugar do leite. "Mas é preciso votar." PESQUISA O apoio a Chávez no referendo também pode ser afetado por uma questão política: as críticas que o ex-ministro da Defesa Raúl Baduel tem feito à reforma constitucional. Baduel, que ajudou Chávez a voltar ao poder após o golpe que afastou brevemente o presidente do cargo em 2002, rompeu com o líder e definiu o plano do governo como um "golpe de Estado". Analistas dizem que a denúncia de Baduel - que ainda é amplamente respeitado por chavistas - abalou o apoio à reforma. Isso se reflete numa pesquisa divulgada ontem pelo Datanálisis. Segundo a sondagem, feita com eleitores decididos a ir às urnas no próximo domingo, 48,9% dirão "não" à reforma, enquanto 39,4% votarão pelo "sim". Dos eleitores ouvidos pelo Datanálisis, 9,5% se declararam indecisos e 2,2% não responderam como votarão. A margem de erro é de 2 pontos porcentuais.

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