Crise põe em risco animais na África 

Sem dinheiro, comunidades que antes viviam do turismo analisam a possibilidade de voltar ao pastoreio, comprometendo décadas de esforços para preservar a vida selvagem na savana queniana

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Por Max Bearak
Atualização:

MAASAI MARA, QUÊNIA - A savana mais famosa do mundo tem duas migrações épicas. Uma percorre a região há séculos: milhões de gnus, zebrase gazelas seguem nuvens de chuva em busca de novos pastos. A outra persegue a horda de animais em jipes de safári ao ar livre, câmeras com objetivas, freezers enfiados nos assentos cheios de lanche e prosecco.

Mas, as restrições de viagem decretadas em razão do coronavírus fizeram os humanos desaparecerem de repente e, juntamente com eles, uma indústria de turismo de bilhões de dólares, que empregava milhões e sustentava um ecossistema essencial para a conservação da vida selvagem em muitos países africanos.

Guias no Quênia registram imagens para serem usadas em safaris virtuais Foto: The Washington Post by Luis Tato

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As áreas de conservação constituem mais de 11% das terras do Quênia, mais que os parques nacionais. O modelo é simples: os conservacionistas comunitários, principalmente criadores de gado, recebem a receita dos safáris como compensação pela perda de pastagens. Assim, empregos proliferam em novos hotéis e guardas florestais. A vida selvagem se torna mais valiosa viva do que morta, desencorajando a caça predatória.

Agora, com a receita do turismo quase zerada, a maioria dos trabalhadores das 167 áreas de conservação comunitárias do Quênia foram dispensados e os pagamentos a quase 1 milhão de pessoas foram reduzidos ou suspensos completamente. Sem dinheiro, as comunidades analisam a possibilidade de voltar ao pastoreio, comprometendo décadas de esforços para preservar a vida selvagem na savana queniana.

“Por meio dessas áreas de conservação, montamos um sistema no qual a coexistência entre humanos e animais selvagens é central”, disse Dickson Kaelo, CEO da Associação de Conservação de Vida Selvagem do Quênia. “A conservação costumava ter como premissa expulsar as comunidades de suas terras. Agora, sabemos que essas comunidades são essenciais. Sem beneficiá-las, não há futuro para preservação.”

As restrições de viagens, de março a julho, interromperam o turismo internacional. Analistas do setor dizem que 2020 será um ano perdido para as operadoras, com prejuízos de US$ 2,2 trilhões e lucro 80% menor, um bilhão a menos de viajantes e mais de 100 milhões de empregos destruídos. Outros negócios intimamente relacionados com o turismo, como companhias aéreas, construção, artesanato, serviços de catering e aluguel de carros, entraram em um redemoinho de falências.

No Quênia, onde 8% da economia é diretamente ligada ao turismo, o PIB deve cair 5%. Em outros países, que também dependem do setor, como Jamaica e Tailândia, a queda pode chegar a 10%, segundo a ONU. Os voos internacionais para o Quênia serão retomados em agosto, mas as chegadas devem ser limitadas em razão das restrições às viagens impostas por europeus e asiáticos.

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Mulher puxa uma rede de pesca numa praia no lago Turkana, perto da cidade de Kalokol, noQuênia. Foto: Baz Ratner / Reuters 

Com voos restritos e os viajantes preocupados com a qualidade dos serviços de saúde disponíveis, pode levar anos até que o fluxo de turistas volte ao normal. Os tombos no mercado de ações e os ataques terroristas sempre ameaçaram o turismo na África no passado, mas a pandemia pode deixar uma cicatriz indelével. 

“No momento, estamos no modo de sobrevivência”, disse Jimi Kariuki, presidente do Conselho de Turismo do Quênia e CEO de uma das mais sofisticadas redes de hotéis do país. “Nem é hora de falar sobre recuperação.”

Se na década passada o debate foi sobre o “turismo excessivo”, entupindo os canais de Veneza e as trilhas de terra do parque Maasai Mara, agora se fala de um futuro em que os turistas ficam mais perto de casa, longe de aviões e espaços públicos. Vastos estacionamentos estão às moscas, da Disney até as pirâmides de Gizé, no Egito.

Ásia e Europa são mais atingidas pelas restrições, porque recebem mais viajantes, mas algumas economias africanas são mais dependentes dos turistas. Isso ocorre porque o turismo selvagem é caro: pacotes de uma semana custam em média cerca de US$ 10 mil. Quênia, Botsuana, Namíbia e Tanzânia são os países mais afetados com a paralisação. Embora a África tenha menos de 5% dos casos globais de coronavírus, os efeitos da pandemia nas economias acabam sendo mais graves.

Nenhum país africano anunciou um grande pacote de resgate para a indústria. Na Tanzânia, o governo reabriu as fronteiras para promover o turismo, negando que o coronavírus esteja presente no país, apesar de evidências claras do contrário.

Em junho, segundo o Ministério do Turismo do Quênia, as operadoras de turismo haviam perdido mais de US $ 750 milhões, em 2020, e 82% disseram ter colocado funcionários em licença não remunerada. “Todo o setor do turismo está parado”, disse o ministro Najib Balala. “Estamos de joelhos.” 

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