Cristãos da Irlanda do Norte esqueceram Cristo

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Por Agencia Estado
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Ele não deve estar contente, o menino Jesus, se tiver virado seu binóculo para a cidade de Belfast, na Irlanda do Norte (Ulster), habitada por cristãos, protestantes e católicos. O que ele viu nos últimos dias em suas lentes é de enojar. Sem dúvida alguma, Jesus Cristo está habituado, há dois mil anos, a ver o ignóbil, desde os inquisidores espanhóis até os açougueiros de Hitler. Mas o espetáculo "som e luz" (sobretudo "morte e trevas") que os irlandeses do norte lhe apresentaram certamente renovaram seu longo suplício. O que ele viu? Coquetéis Molotov, na manhã de hoje, lançados contra crianças e pais condenados por dois pecados: por um lado, o de voltarem às aulas, como sempre no mês de setembro e, por outro, o de pertencerem a um dos dois ramos da religião de Cristo, seja católica, seja protestante. Ontem, as crianças católicas já tinham sido sacudidas pelos fanáticos protestantes. Aconteceu em uma escola, por ironia da história, denominada "A Santa Cruz", uma escola católica do bairro católico (portanto, republicano) de Ardoyne. Mas essa escola teve a indelicadeza de se encontrar nos limites de um bairro protestante. Então, os "protestantes leais à coroa" (monarquistas) postaram-se em uma rua protestante, a Ardoyne Road, rua pela qual os estudantes católicos são obrigados a passar para irem à escola. O espetáculo foi degradante: meninas católicas, de 5 e 6 anos de idade, vaiadas, ameaçadas e cobertas de insultos obscenos: "porcas republicanas!", "putas!". Quem voltou às salas de aula foram meninas em prantos. "Deixai vir a mim as criancinhas", dizia Cristo. Não houve feridos, nada de mortes. Felizmente, mas isso já aconteceu: a "mão vermelha" (protestante) e suas milícias (Ulster Defence Association e Ulster Freedom Fighters) assassinaram dois católicos, neste verão, para puni-los por serem católicos. É ingenuidade indignar-se diante da violência que joga uns contra os outros, como búfalos, como cervídeos, os fiéis ao mesmo Deus, ao mesmo Cristo, os católicos e os protestantes. A história deveria nos ter ensinado. As guerras de religiões, na Europa, nos séculos 16 e 17, foram algumas das mais cruéis da história. Em 1572, a rainha da França, Cathérine de Médicis, chefe do clã católico, lançou os seus contra os protestantes. No dia 23 de agosto de 1572, dia do massacre de São Bartolomeu, as matilhas de católicos lançaram-se com violência sobre os protestantes e os perseguiram, massacraram 3 mil deles, mataram seu chefe, o admirável Coligny. O rio Sena ficou vermelho com o sangue dos "reformadores". Dois séculos depois, o grande escritor francês, Voltaire, ficava fisicamente doente todo dia 23 de agosto, dia do aniversário do massacre de São Bartolomeu. A baixeza dos protestantes de Belfast (mas os católicos de Belfast demonstraram, em outros momentos, uma baixeza igual) tem apenas um mérito: o de lembrar que a ignomínia não é uma especialidade das tribos primitivas, dos selvagens, dos islamitas, dos animistas, dos comunistas, dos negros ou de outros "homens inferiores". O espetáculo repugnante de Belfast foi representado por pessoas provavelmente "muito bem convencidas de sua decência", pessoas que gostam de seus cães e gatos, humanistas, burguesas, evoluídas. Não são "árabes" como esses "islamitas sujos" que, na Argélia, matam aldeias inteiras sem razão. Não são asiáticos primitivos, como esses "afeganes sujos" que martirizam as mulheres. Não são "comunistas sujos", como os chineses que perseguem os tibetanos. Não são "ex-stalinistas", como esses imundos russos que destroem os chechenos condenados por serem muçulmanos. Não: os imbecis de Belfast são parte das pessoas que pertencem à religião do perdão, da doçura e do amor pelas crianças, a de Cristo. Além disso, são pessoas de uma velha nação adepta da cultura, toda a Grã-Bretanha, e não uma dessas novas e duvidosas etnias que se encontram na Nova Guiné, na África central ou nas Filipinas. A lição é clara: todas as sociedades humanas, as mais evoluídas, as mais refinadas, podem cair para o lado do "mal", escolher a morte, o sangue, o ódio. Também neste caso a história tem o que contar: a Alemanha era a nação mais brilhante (filosofia, ciências, literatura, política), e seu "ventre fecundo" fabricou a "besta imunda", o nazismo. A França é o país dos "direitos humanos", e seus soldados, seus generais torturaram até a morte os patriotas argelinos, fizeram de Argel um pântano viscoso. A Espanha lançou suas matilhas franquistas (ou comunistas, talvez) sobre todos aqueles que não pensavam como elas. O que dizer, no dia seguinte ao dia vergonhoso? Simplesmente, repetir a palavra de Jesus Cristo, que tanto os protestantes quanto os católicos invocam em seus delírios, essa palavra insubstituível, mesmo que, em dois mil anos, jamais tenha tido o menor efeito: "Amai-vos uns aos outros".

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