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É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

Opinião|Cristina espelha o Brasil

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Um grande empreiteiro preso, um ex-portador do dinheiro convertido em delator, uma ex-presidente desafiando a Justiça e convocando a população a defendê-la. O roteiro da novela argentina parece um plágio do enredo brasileiro. Mas não há só coincidências nos dramas encenados de cada lado da fronteira.

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Na Argentina, foi preciso que terminasse o mandato da presidente Cristina Kirchner e ela não conseguisse fazer seu sucessor para que avançassem as investigações sobre as “pedaladas cambiais” de seu governo e sobre seu possível envolvimento em desvios de dinheiro público e na morte de um promotor. 

O juiz Claudio Bonadío, que preside as investigações, teve o salário reduzido em 30%, antes de ser finalmente afastado do cargo, no ano passado, ao ordenar buscas e apreensões na rede de hotéis Hotesur, da família Kirchner. 

“Se eu aparecer ‘suicidado’, procurem o assassino, porque esse não é meu estilo”, disse no ano passado o juiz, em alusão à morte misteriosa do promotor Alberto Nisman, horas antes de apresentar no Congresso os resultados de sua investigação. Nisman concluiu que a presidente encobrira o suposto envolvimento do Irã no atentado de 1994 contra a Associação Mutual Israelita-Argentina (Amia), em Buenos Aires. De acordo com a promotora Viviana Fein, Nisman havia redigido um esboço de pedido de prisão da presidente, encontrado na lata de lixo de seu apartamento.

Fora da Casa Rosada, Cristina terá muito o que responder. Na quarta-feira, ela foi a sua primeira audiência judicial – no caso envolvendo a venda, pelo Banco Central argentino, de papéis futuros em dólares às vésperas do primeiro turno das eleições, em 25 de outubro. Os papéis foram vendidos a 10,6 pesos por dólar, quando o preço de mercado era de 15 pesos. O prejuízo foi calculado em US$ 7,3 bilhões.

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Cristina e sua equipe econômica argumentaram que foram operações corriqueiras para um Banco Central. Não é bem assim. Quando quer aumentar ou diminuir o volume de dólares no mercado, um Banco Central realiza leilões para chegar ao preço do mercado. O simples ato de vender já puxa o dólar para baixo, explica Gustavo Loyola, ex-presidente do BC brasileiro. “Se isso teve endereço certo ou não, vender a um preço abaixo do mercado gera perdas e ganhos aleatórios. Os BCs precisam evitar isso.” O governo brasileiro sacou R$ 72,4 bilhões de bancos públicos para encobrir seus gastos, violando a Lei de Responsabilidade Fiscal, e também alegou que outros o fizeram antes dele.

Obras. Cristina terá de esclarecer suas relações com o empreiteiro Lázaro Báez, que abriu a Austral Construcciones no ano em que Néstor Kirchner chegou ao poder, em 2003, e a partir de então enriqueceu ganhando grandes contratos públicos. O empresário é acusado de lavagem de US$ 5 milhões. A ex-presidente e seu marido, falecido em 2010, são suspeitos de ter lavado dinheiro com ajuda de Báez, que teria pagado por diárias na rede Hotesur sem ter ocupado os quartos. De acordo com o jornal francês Le Monde, o casal aparece nos Panama Papers, em operações de lavagem de US$ 65 milhões no Estado americano de Nevada.

O presidente Mauricio Macri também figura na lista, como diretor de uma empresa nas Bahamas entre 1998 e 2009. Ele não a declarou quando assumiu a prefeitura de Buenos Aires, em 2007, e a presidência, no fim do ano passado. Macri afirmou que nunca teve participação nem lucro com a empresa, criada por seu pai para fazer investimentos no Brasil. 

Ao sair da audiência na quarta-feira, Cristina assumiu um tom desafiador em discurso para milhares de simpatizantes que protestavam, sob chuva, na frente do tribunal. “Podem me convocar mais 20 vezes, podem me prender, mas não poderão me calar, impedir-me de estar sempre com vocês”. E convocou os argentinos a formar uma “frente cidadã”. O discurso lembra o de Lula no Diretório Nacional do PT, ao sair do interrogatório da Polícia Federal, no dia 4 de março.

No Brasil, entretanto, as investigações avançaram sob o governo do PT – e, num certo sentido, graças a ele, uma vez que foi Lula quem introduziu a nomeação do procurador-geral escolhido pela Associação Nacional dos Procuradores da República, conferindo independência ao cargo. Antes, o procurador-geral protegia o presidente que o nomeava. A PF e a Justiça também ganharam em expertise e independência. 

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Outra diferença: o ciclo político permitiu que o esgotamento do populismo de esquerda – causado pela queda nos preços das commodities – se resolvesse com a eleição presidencial na Argentina. No Brasil, Dilma Rousseff conseguiu esconder do grande público o colapso do modelo econômico até a eleição. Esse descompasso levou o Brasil ao trauma do processo de impeachment. Como mostro no meu blog, nenhum país teve dois processos desse tipo no intervalo de apenas 24 anos.

Opinião por Lourival Sant'Anna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais

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