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Cristina não surpreenderá ninguém

Por Tomás Eloy Martínez
Atualização:

Ninguém espera que Cristina Kirchner revele muitas surpresas em seus primeiros seis meses de governo, que começa dia 10. A maioria de suas políticas seguirá o caminho traçado por seu marido e antecessor, Néstor Kirchner. Não haverá tampouco mudanças substanciais no gabinete, nem no segundo escalão da administração. Um de seus assessores contou que, pouco depois de ser eleita, Cristina ouviu com atenção as críticas prudentes do ex-presidente chileno Ricardo Lagos a Michelle Bachelet, que o sucedeu no governo. Lagos, que deixou o cargo com um índice de popularidade sem precedentes, observou como Bachelet confiava a figuras novas e sem experiência a administração dos negócios públicos em campos tão sensíveis como a saúde e a educação. Assim, os ventos que levavam o Chile a um horizonte de crescimento gradual e firme logo se tornaram turbulentos e desataram a agitação social. Cristina, que conquistou a presidência por ampla margem de votos, sabe como pode ser perigosa a tentação de mostrar autonomia e exibir poder com mudanças drásticas. Ela conservará muitos ministros de seu marido. Seguirão no governo o atual chefe de gabinete, Alberto Fernández, o chanceler Jorge Taiana e o ministro da Economia Miguel Peirano. Uma mulher presidente não é algo novo na Argentina. Há meio século, Eva Perón tinha tanto poder quanto seu marido, mas não podia tomar decisões sem permissão. Em 1974, Isabelita, viúva de Juan Domingo Perón, governou com torpeza um país em estado caótico. Deu no que deu. Ela sucumbiu à influência doentia de seu guru José López Rega e foi derrotada por uma ditadura cruel que aguçou os desastres herdados. Cristina é mais independente e preparada que as duas precursoras. Não é fácil prever como ela governará, porque a realidade se move vertiginosamente na América Latina, e tanto uma eventual guerra entre os EUA e o Irã quanto os caprichos de Hugo Chávez como ou os preços estratosféricos da energia podem agitar as águas e desencadear a tormenta. Cristina iniciará o governo com algumas vantagens. A oposição está confusa e dividida. Sua principal rival nas eleições, a senadora Elisa Carrió - de quem a senadora Kirchner foi aliada e amiga durante uma década - age com destemperança. Dias antes das eleições de 28 de outubro, o ex-presidente Raúl Alfonsín a desqualificou num programa de televisão porque "toda vez que ela faz alguma coisa, pede conselho aos santos e se deixa guiar por vozes imaginárias". Elisa demorou 10 horas para reconhecer a derrota e - logo que teve a evidência de que nem sequer disputaria um segundo turno - elegeu-se a si mesma líder de uma oposição heterogênea, que não se afina com ela. O maior desafio de Cristina é atuar nas três grandes cidades da Argentina onde foi derrotada: por Carrió, em Buenos Aires e Rosário, e pelo ex-ministro da Economia Roberto Lavagna, em Córdoba. Para seduzir esses eleitores negligentes, ela tentará provar que, diferentemente de seu marido provinciano e desconfiado, não teme abrir-se para o mundo. Ela com certeza dará ênfase nas relações com o Brasil do presidente Lula - um de seus modelos -, com a Espanha, principal investidora estrangeira na Argentina, e com o Chile, de Michelle Bachelet. Se Hillary Clinton conseguir a presidência dos EUA, Cristina - que a admira - procurará estabelecer com ela uma aliança de ferro, sem se comprometer em aventuras bélicas. A amizade com Chávez é um dos problemas ingratos que ela terá de resolver. A nova governante argentina tem consciência dos delírios hegemônicos do César venezuelano, mas ao mesmo tempo sente gratidão pela mão que ele estendeu a seu país em épocas de asfixia econômica. Cada vez que o elogia em público, ela provoca calafrios nos investidores que querem aferrar-se a uma Argentina estável e sem surpresas. Se a bonança dos preços agrícolas e do ritmo de crescimento superior a 8% que beneficiou o governo de seu marido se mantiver, o percurso de Cristina não enfrentará sobressaltos. Ela é inexperiente no manejo da economia, mas sempre contará com a assessoria alerta do marido, que a verá governar dos bastidores, esforçando-se para não enfraquecer sua imagem de verdadeira chefe de Estado, o que poderia ser fatal em um país de tradição tão autoritária e machista como a Argentina. No fim das contas, seu marido aspira a sucedê-la e, talvez, ser eleito para outro mandato, o que lhe permitiria governar de 2011 a 2015 e, se o reelegem, de 2015 a 2019. Ele está mais interessado que ninguém, portanto, em que sua mulher tenha êxito e lhe deixe um país ordenado e próspero. Talvez tenha sido por esse país aprazível que os argentinos votaram em 28 de outubro, menos atentos à continuidade de uma presidência familiar do que num crescimento sustentado. Tudo leva a crer que Cristina manterá o câmbio desvalorizado para estimular exportações e se esforçará para favorecer aos investimentos externos, que até agora apontam para mercados mais hospitaleiros, como Chile e Brasil. Pela primeira vez nas décadas de democracia, a linguagem dos empresários argentinos - hostis desde o começo ao casal Kirchner - tornou-se esperançosa e otimista. Numa assembléia em Mar del Plata, no começo do mês, eles ouviram Fernando Henrique Cardoso e Carlos Fuentes pedir-lhes que tenham confiança. Que outro sentimento poderiam ter? Depois da fuga precipitada que desatou a crise de 2001, quando parecia que a Argentina caía num abismo sem fundo, toda estabilidade é um bálsamo que permite pensar, enfim, no amanhã. TRADUÇÃO DE CELSO MAURO PACIORNIK *Tomás Eloy Martínez é autor de ?O Romance de Perón? e ?O Vôo da Rainha?, entre outros. Ele é diretor do programa de Estudos Latino-Americanos da Universidade Rutgers

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