Daniel Ortega quer voltar ao comando da Nicarágua

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Por Agencia Estado
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O ar vibra com os jingles de campanha eleitoral, a explosão de fogos de artifício e os gritos de "Daniel! Daniel!" Lá está ele, empoleirado no assoalho de uma picape que percorre as ruas esburacadas, acenando para a multidão que se avoluma em volta do candidato. Ele usa a faixa vermelha e negra que é sua marca registrada, que seu antigo inimigo, George Bush, o pai, disse certa vez que o tornava parecido com um escoteiro. No momento em que o cortejo chega à praça, há um rio revolto de homens em bicicletas, moças de corpetes que saltam para dar uma olhadela e mães que seguram seus bebês para ele beijar. Alto-falantes trovejam com a previsão: "O futuro presidente da Nicarágua: Daniel Ortega!" Uma década atrás, havia poucos ícones mais influentes do que ele nas lutas travadas por tabela durante a guerra fria. Poucos inimigos dos EUA eram mais denegridos do que Ortega. Os guerrilheiros sandinistas liderados na época pelo então jovem Ortega derrubaram a brutal ditadura de Anastasio Somoza em 1979. Mas quando instituíram um Estado marxista, confiscando fazendas e empresas, viram-se entalados numa dura guerra com os "contras", os rebeldes apoiados pelos EUA, durante a maior parte da década seguinte. Nos 11 anos passados desde que eleições removeram Ortega do poder e, segundo parecia, o lançaram na lata de lixo da história, a América Latina passou por enormes mudanças. Governos eleitos democraticamente substituíram regimes autoritários. A linguagem do livre comércio substituiu os lemas antiimperialistas. Mas no mês passado, Ortega, com 55 anos, percorria as ruas da cidade de Chinandega, festejando o 22º aniversário de sua revolução, liderando as pesquisas de opinião e pronto para recuperar a presidência da Nicarágua em novembro. Segurando um microfone, ele lamentou os mortos - não foram só os sandinistas que tombaram "numa guerra imposta pelos americanos", mas também os "camponeses pobres que não estavam defendendo nada de seu, que não eram mais que escravos e criados dos ricos". Em 1988, quando Ortega trajou uniforme militar numa conferência regional sobre democracia, o presidente Bush I acusou-o de ser "um animal num garden-party". Agora Bush II tem motivos para temer que Ortega esteja logo perturbando seu governo. O problema hoje são os mercados, não a geopolítica. O presidente George W. Bush promete transformar a América Latina numa gigantesca zona de livre comércio. Mas Ortega e outros socialistas que ressurgem na região podem interferir. Embora a liberalização econômica tenha levado crescimento econômico e investimento à América Latina, pouco fez para aliviar a pobreza. Ortega é um político hábil, e o descontentamento generalizado com a corrupção no governo atual também ajuda sua campanha. Mas a desigualdade econômica é seu tema-chave - bem como o de outros velhos esquerdistas. Hugo Chávez continua tendo sucesso na Venezuela. Alan García quase venceu a eleição de junho no Peru. Luiz Inácio Lula da Silva lidera as pesquisas de opinião no Brasil. E ex-guerrilheiros em El Salvador também podem ser conduzidos ao poder. Completando a sensação de déjà vu, três americanos ex-opositores de Ortega também estão de volta ao governo. John Negroponte, que foi embaixador em Honduras nos anos 80 e era geralmente considerado um elo-chave dos EUA com os contras, é agora o nomeado de Bush para ocupar o cargo de embaixador na ONU; Elliott Abrams, chefe de Assuntos Interamericanos no Departamento de Estado de Ronald Reagan, é membro de alto escalão do Conselho de Segurança Nacional; e Otto Reich, que chefiou o agora extinto Escritório de Diplomacia Popular, que disseminava propaganda para conseguir apoio da população para a ajuda aos "contras", é candidato a secretário de Estado assistente para Assuntos do Hemisfério Ocidental. Não é de surpreender que este velho elenco esteja revivendo um antigo script. Lino Gutiérrez, o segundo homem na divisão do Departamento de Estado para o Hemisfério Ocidental, viajou para Manágua em junho e transmitiu uma advertência a Ortega: "Se os que hoje se dizem democratas fossem mesmo, a esta altura já teriam devolvido aos seus legítimos donos as propriedades confiscadas ilegalmente. Teriam renunciado à violência para sempre. Teriam dito a violadores dos direitos humanos que eles já não têm espaço no partido político. Teriam adotado modelos melhores do que ditadores e terroristas." Numa entrevista à Newsweek, Ortega ridicularizou tal crítica. "Ela está totalmente fora do contexto da realidade", disse. "É o mesmo que pedir aos americanos que, para mostrar que se vocês são democratas e respeitam a soberania, precisam devolver o território que vocês tomaram do México." A vida de Daniel Ortega como rebelde começou nos anos 60, quando ele ingressou no movimento guerrilheiro sandinista. Criado na pobreza, sob uma das mais velhas ditaduras da América Latina, ele participou de alguns dos primeiros ataques urbanos dos sandinistas, incluindo o assalto a uma agência do Bank of America. Mais tarde passou sete anos na prisão, onde escreveu poemas, entre eles um intitulado Nunca Vi Manágua Quando Minissaias Estavam na Moda. Ele saiu em 1974, mas amigos contam que a prisão deixou sua marca: Ortega geralmente evita olhar nos olhos do interlocutor, raramente confraterniza com os outros e, quando não está diante de uma multidão que o aplaude, prefere ficar sozinho. Sua companhia mais importante é sua mulher, Rosario Murillo, que ele conheceu nos anos 70. Alguns ex-guerrilheiros dizem que exatamente a falta de carisma de Ortega levou os sandinistas a fazer dele o rosto da revolução; acreditavam que ele ia transmitir uma imagem de moderação ao mundo. Mas Ortega nunca se esquivou a malhar os EUA. Na ONU, provocou aplauso caloroso ao declarar: "Que o presidente Reagan se lembre de que Rambo só existe nos filmes." A delegação americana retirou-se do recinto da Assembléia-Geral. Tal tipo de bravata desgostava Bush, o pai. Ainda assim, numa rápida mudança em relação à política de Reagan, de continuar a guerra a qualquer preço, Bush decidiu negociar a paz. Precisando desesperadamente de reconhecimento externo, Ortega concordou em realizar eleições em 1990. Ele estava tão certo de vencer que convidou observadores estrangeiros, tornando quase impossível questionar os resultados. Quando uma coalizão apoiada pelos EUA triunfou, Ortega reconheceu a derrota. Mas não sem uma saída dramática. Em seus últimos meses no poder, ele formalizou milhares de transferências de propriedades e distribuiu casas e terras entre seus altos comandantes. Enquanto o novo governo recobria de tinta os murais revolucionários, Ortega lutou para ressuscitar sua carreira política. Conquistou uma cadeira no Congresso, mas perdeu vergonhosamente na eleição presidencial de 1996. A essa altura, a liderança do partido havia sofrido cisão, mas Ortega continuou sendo o rei inquestionável das bases sandinistas. Poucos partidos estiveram tão indissoluvelmente vinculados à identidade de um homem. O comitê central dos sandinistas está ligado ao fundo da casa de Ortega, uma vasta mansão que ele confiscou de um parente de Anastasio Somoza em 1979. "Não me considero um político", disse Ortega na entrevista. "Sempre me considerei poeta. Para ser um revolucionário, é preciso ser poeta, é preciso sonhar." Esses sonhos pareceram praticamente mortos em 1998, quando a enteada de Ortega, Zoilamérica Narvaéz, acusou-o publicamente de tê-la estuprado e de lhe fazer carinhos durante os anos 80. Numa recente entrevista à Newsweek, ela lembrou: "Ele disse que precisava fazer aquilo para ser o líder da revolução e se sentir bem emocionalmente." Zoilamérica declarou que durante anos não revelou o abuso, por lealdade aos sandinistas. Ortega desmentiu as acusações na época - e de novo em sua entrevista à Newsweek -, afirmando que elas tinham motivação política, e a comoção popular logo desapareceu. "As pessoas são incapazes de imaginar Daniel Ortega abusando de mim", disse Zoilamerica, de 33 anos. "Elas o vêem como um homem que trabalha 15 horas por dia, que se sacrifica pela revolução, que não tem tempo." Nunca houve uma investigação formal, porque Ortega se recusa a abrir mão de sua imunidade parlamentar. "Prefiro pagar o preço político a prejudicar minha família", disse. Sua reação foi o ponto de ruptura para muitos sandinistas de alto escalão, incluindo Vilma Nunez, importante líder dos direitos humanos. "Daniel Ortega transformou os sandinistas num partido antidemocrático, de instrumento da luta do povo num grupo de pessoas em busca de poder para si", opinou.

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