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Das fileiras do EI para o coração da Bélgica

Jihadista que voltou da Síria vive sob vigilância, mas ainda prega início de ‘califado’ na Europa

Por Andrei Netto , correspondente e Paris
Atualização:

PARIS - Um novo movimento migratório silencioso em direção à Europa, de natureza bem diferente da crise dos refugiados de 2015, está em curso nos últimos meses. Desde que o grupo Estado Islâmico (EI) começou a perder terreno em torno de seus bastiões de Raqqa e Mossul, na Síria e no Iraque, entre 3 mil e 5 mil europeus estão deixando os dois países e retornando, por vontade própria ou não, à França, à Bélgica, ao Reino Unido e a outros países de origem. Trata-se dos jihadistas europeus, que tentam reconstruir suas vidas após a prisão, a condenação, o estigma e o temor sobre o risco potencial que representam.

Michael Delefortrie, 28 anos, é um dos que já retornaram à Europa. Belga da cidade de Antuérpia, Younes, como ficou conhecido a partir de sua adesão ao grupo extremista Sharia4Belgium, migrou para a Síria em dezembro de 2013, com o objetivo de se juntar ao EI. Em Alepo, dormia com um fuzil AK-47 em mãos e duas granadas ao alcance. No dia a dia, enterrava os “irmãos” do grupo mortos em combate, além de monitorar postos de fronteira e prisioneiros, a quem servia refeições, acompanhava ao banheiro e tentava inculcar o Alcorão. 

Younes, como é conhecido Michael Delefortrie, mantém proselitismo radical Foto: REUTERS/Francois Lenoir

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Antes que tivesse aderido à luta armada e partido à frente de batalha, retornou ao seu país natal para buscar sua família, mulher e dois filhos, que pretendia levar ao “califado” em janeiro de 2014. O plano fracassou. Na chegada, foi preso, julgado entre os 46 membros do movimento Sharia4Belgium, grupo dissolvido pela polícia em 2011 após tornar-se notório por pregar a criação de um califado na Bélgica e a adoção da lei islâmica.

Younes foi condenado a três anos de prisão. Desde então, a história de conversão de um menino católico praticante em um muçulmano salafista radical no subúrbio de Merksem, um distrito conhecido pela alta presença de marroquinos, provoca polêmica. Em entrevista ao Estado, a quem aceitou falar sem cobrar – ele afirma pedir entre € 400 e € 1,2 mil por entrevista que eventualmente concede –, Younes definiu-se como “um provocador” que continua a pregar a adoção da sharia e a criação de um califado em plena Europa. Diz compreender os atentados terroristas que atingiram Paris, Bruxelas, Berlim, Londres e agora também Estocolmo, e reconhece que ainda desempenha uma função na máquina ideológica do Islã radical: a do proselitismo.

Na conversa, Younes explicou as razões de sua adesão ao EI. “O início, a decisão de ir para a Síria, não foi apenas pela guerra. Nós participamos de uma organização, Sharia4Belgium, que lutava por valores. E fomos impedidos de continuar, então, não nos sentíamos mais bem acolhidos na Bélgica, não tínhamos liberdade de expressão.”

A liberdade de expressão é o que Younes usa para pregar o islamismo a cada oportunidade. Essa é, segundo admite, sua função desde que abandonou o jihadismo. “Todo muçulmano deve seguir a sharia. Isso é ser muçulmano, é ser religioso”, argumenta. “Ela não se limita a julgamentos, a punições. A lei islâmica é muito maior que isso. As pessoas veem apenas as execuções, e não o sistema todo.”

Segundo Younes, o EI é um Estado de fato, com um governo funcional, que administra uma grande extensão territorial entre a Síria e o Iraque. “As pessoas veem o EI como um bando de bandidos, mas em cada província, em cada cidade, há pessoas que decidiram seguir seu modo de vida.” E, segundo ele, essas pessoas não comemoram atentados no Ocidente. “Ninguém está dançando sobre uma mesa quando uma bomba explode na Europa. Ninguém celebra”, diz ele, que completa: “Não glorifico, mas entendo.”

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No raciocínio de Younes, o Ocidente e o EI estão em guerra, e os atentados terroristas representam o contra-ataque. “Se você está fazendo a guerra contra alguém, é normal, é lógico que as pessoas contra-ataquem”, afirma.

Para Younes, o atentado no aeroporto de Bruxelas, em março de 2016, “não é divertido”, mas “acontece a cada 10 minutos no Oriente Médio”. “Quando acontece a 4 mil ou 5 mil quilômetros de distância não importa. Mas se acontece na sua cidade, as pessoas ficam preocupadas, com medo.” O jihadista não se sente na obrigação de condenar o terrorismo, nem sente nenhuma empatia pelo país em que nasceu e retornou após a passagem pelo EI. “Não sou belga, sou um muçulmano.”

Younes é um dos exemplos mais célebres de jihadistas que retornaram à Europa em razão de seu discurso radical. No campo dos arrependidos os exemplos também são numerosos, como a estudante Laura Passoni, 30 anos, coautora do livro Au Cœur de Daesh Avec Mon Fils (No Coração do Daesh Com Meu Filho). Daesh é o acrônimo em árabe para o EI. A versão de Laura é oposta em relação à de Younes. Em seu livro, a jovem descreve uma rotina reclusa e marcada pela submissão, pela violência física e pelo terror praticado pelas milícias islâmicas e pela difícil oportunidade de abandonar a Síria e retomar a vida.

Para lembrar

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Cerca de 5 mil podem voltar

Números coletados pelas autoridades europeias mostram que, desde o início do conflito na Síria, cerca de 5 mil muçulmanos radicalizados na União Europeia foram ao país e se alistaram nas fileiras de grupos jihadistas como o Estado Islâmico. O retorno desses extremistas é uma das maiores preocupações na Europa hoje, especialmente pela dificuldade de lidar com o alto fluxo de refugiados que deixam o país do Oriente Médio – autoridades temem que os terroristas estejam se infiltrando no continente disfarçados entre os milhares de civis que fogem, justamente, da guerra e do terror em seu país de origem.

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