Democracia madura

Esquerda e direita têm se revezado no poder, mas país já chegou a consensos mínimos

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colunista convidado
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Por Lourival Sant'Anna
Atualização:

Para um repórter brasileiro, é desconcertante vir ao Chile depois de 16 anos de ausência, como no meu caso. A gente demora um pouco para se sintonizar nas conversas. Por exemplo, quando um jornalista chileno que está trabalhando como voluntário na campanha do candidato do governo socialista, Alejandro Guillier, tenta dissuadi-lo de entrevistar um ex-presidente do Banco Central com o seguinte argumento: “Ele é muito de direita, é contra as reformas”.

Michelle Bachelet, presidente do Chile Foto: REUTERS/Enrique Marcarian

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No Brasil, na Argentina e na França, reformas são identificadas com “a direita” ou “o centro”. Entretanto, o Chile está no que se chama aqui de “segunda geração de reformas”. A primeira foi a de cunho liberal, imposta pelo ditador Augusto Pinochet nos anos 90. 

Em seu governo, a presidente Michelle Bachelet retrocedeu em algumas dessas reformas. Com a justificativa de fechar brechas para a sonegação e cobrar impostos das grandes empresas, Bachelet aprovou no Congresso uma reforma fiscal que elevou a carga tributária dos empresários, inibindo investimentos. 

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Na contramão do que vem sendo feito na França e no Brasil, e deverá ser feito na Argentina, a presidente chilena também propôs uma reforma trabalhista que aumenta o poder dos sindicatos e dos dissídios coletivos, em detrimento das negociações entre empregados e patrões em cada empresa.

Como acontece em países tão diferentes como Estados Unidos e China, não existe ensino superior gratuito no Chile: todas as universidades públicas cobram mensalidades, e em geral acima dos valores das particulares, dada a maior qualidade e concorrência por seus cursos.

Bachelet ampliou de 40% para 60% a faixa mais pobre da população com direito a bolsas integrais. As famílias acima do teto de 168 mil pesos chilenos (US$ 280) por pessoa, que corresponde à renda máxima de 60% da população, precisam recorrer ao crédito educativo, assumindo dívidas que os chilenos comparam à compra de uma casa, em valor e quantidade de anos para saldar. É o caso da maioria, já que as mensalidades nas faculdades públicas oscilam entre 350 mil e 600 mil pesos, dependendo do curso.

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O candidato favorito na eleição presidencial deste domingo, Sebastián Piñera, de centro-direita, quer reverter essas mudanças. As alíquotas e isenções para empresas devem voltar aos patamares anteriores; as leis trabalhistas, flexibilizadas; e as bolsas integrais, mantidas para os atuais 50% dos alunos. O restante será atendido pelo crédito educativo, cujo pagamento não poderá exceder 10% do salário dos ex-alunos, depois de ingressarem no mercado de trabalho.

No início dos anos 80, Pinochet privatizou o sistema previdenciário, criando contas de capitalização individuais, como os fundos de pensão complementar do Brasil. As contribuições não excedem 10% dos salários, e devem ser feitas por 30 anos. 

“A promessa de que os chilenos teriam uma velhice tranquila, no entanto, não se concretizou. As mulheres se aposentam com 60 anos e os homens, com 65.” Mas a expectativa média de vida do chileno é de 80 anos (5 a mais que a do brasileiro). Portanto, a conta não fecha, e muitos chilenos estão se aposentando com 150 mil pesos (US$ 250), com os quais é impossível sobreviver. O governo Bachelet propôs aumentar o teto das contribuições para 15%. Isso está em discussão.

Esquerda e direita têm se revezado no poder no Chile. Mas o país já chegou a alguns consensos mínimos, que o permitem andar para a frente, errar, acertar, corrigir o rumo. É o que se pode esperar de uma democracia madura.

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