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Democracia resiste a novo autoritarismo

É cedo para concluir que autocracias pós-Guerra Fria põem abaixo a tese de que História acabou

Por Francis Fukuyama
Atualização:

Estaríamos entrando na era dos autocratas? É certamente tentador pensar assim depois de ver a recente surra dada pela Rússia na Geórgia. Esta invasão marca com clareza uma nova fase na política mundial, mas seria um erro pensar que o futuro pertence à mão pesada do russo Vladimir Putin e aos seus colegas déspotas. Estou especialmente interessado em discernir o formato do novo momento internacional, porque em 1989 escrevi um ensaio intitulado "O Fim da História?". Nele, eu argumentava que as idéias liberais haviam triunfado de maneira conclusiva com o fim da Guerra Fria. Mas hoje, o predomínio dos Estados Unidos sobre o sistema mundial está fraquejando; Rússia e China se oferecem como modelos, exibindo uma combinação de autoritarismo e modernização que claramente desafia a democracia liberal. Eles parecem ter grande número de imitadores. Apesar de o general Pervez Musharraf ter finalmente concordado em renunciar à presidência do Paquistão, este importante cliente dos EUA é governado de maneira ditatorial desde 1999. No Zimbábue, Robert Mugabe recusa-se a deixar livre o caminho até o poder, mesmo tendo perdido a eleição. Na região andina da América Latina, as liberdades democráticas são erodidas por presidentes populistas e democraticamente eleitos, como é o caso de Hugo Chávez na Venezuela. A soma de tudo isto levou alguns autores a sugerir que estamos agora testemunhando um retorno à Guerra Fria, a volta da História ou, no mínimo, um retrocesso até o mundo do século 19 e o seu cenário de grandes potências em conflito. Não tão depressa. Estamos com certeza nos aproximando do que Fareed Zakaria, editor da revista Newsweek, chama de "mundo pós-americano". Mas enquanto os valentões seguem fazendo demonstrações de força, a democracia e o capitalismo ainda não têm verdadeiros concorrentes. As fáceis analogias históricas com outras eras apresentam dois problemas: elas pressupõem uma visão caricatural da política internacional durante estes períodos anteriores, e implicam numa constituição claramente definida do tipo de regime chamado de "governo autoritário" - um regime que seja agressivo no exterior, abusivo no interior e inevitavelmente perigoso para a ordem mundial. Na verdade, os regimes autoritários de hoje em dia têm pouco em comum entre si, a não ser pela falta de instituições democráticas. Poucos têm a combinação de força, coesão e idéias necessária para realmente dominar o sistema global, e nenhum deles sonha com a derrubada da economia globalizada. Se quisermos realmente compreender o mundo que se desenvolve diante de nós, precisamos estabelecer distinções claras entre os diferentes tipos de autocratas. Em primeiro lugar, há uma grande diferença entre aqueles que presidem Estados fortes e coerentes e aqueles que presidem Estados fracos, incompetentes ou corruptos. Musharraf foi capaz de mandar no Paquistão durante quase uma década somente porque o Exército paquistanês, a sua base de apoio, é a instituição mais coesa de um Estado completamente segmentado. O Zimbábue está numa situação ainda pior, enquanto Mugabe preside sobre um horrendo colapso econômico. Autocracias débeis como a do Zimbábue só podem ameaçar seus vizinhos por meio da produção de refugiados desesperados para escapar da hiperinflação e da pobreza. Os autocratas de hoje também se mostram surpreendentemente fracos em se tratando de idéias e ideologias. A Alemanha nazista, a União Soviética e a China de Mao eram especialmente perigosas porque se apoiavam em poderosas idéias de apelo potencialmente universal, sendo este o motivo de termos encontrado armas e conselheiros soviéticos em lugares como Nicarágua e Angola. Mas este tipo de tirano ideológico não figura mais no palco mundial. IDÉIA MAIS FORTE Apesar dos recentes avanços do autoritarismo, a democracia liberal permanece a idéia mais forte e de apelo mais amplo entre as disponíveis. A maioria dos autocratas, como Putin e Chávez, ainda tem a sensação de que precisam se adequar aos rituais externos da democracia, mesmo enquanto a extirpam de sua substância. Até o líder chinês Hu Jintao sentiu-se obrigado a falar sobre democracia em antecipação aos Jogos Olímpicos de Pequim. E Musharraf mostrou-se democrático a ponto de se deixar derrubar do cargo pela ameaça de impeachment. Se os autocratas de hoje estão dispostos a se curvar diante da democracia, eles estão ansiosos para bajular o capitalismo. É difícil ver como podemos estar entrando numa nova Guerra Fria quando a China e a Rússia aceitaram a metade capitalista da parceria entre capitalismo e democracia. (Mao e Stalin, em contraste, buscavam medidas econômicas autárquicas fadadas ao fracasso.) A liderança do Partido Comunista chinês reconhece que a sua legitimidade depende da continuidade do crescimento acelerado. Na Rússia, a motivação econômica para a adoção do capitalismo é muito mais pessoal: Putin e boa parte da elite russa se beneficiaram enormemente do seu controle sobre os recursos naturais e outros bens. No campo das idéias, atualmente o único verdadeiro concorrente da democracia é o islamismo radical. De fato, um dos Estados-nação mais perigosos do mundo atual é o Irã, governado por mulás xiitas extremistas. Mas, o radicalismo sunita demonstrou impressionante incapacidade de assumir o verdadeiro controle de um Estado-nação, devido à sua propensão a devorar os seus próprios partidários em potencial. Alguns muçulmanos privados de direitos civis se deleitam com os loucos discursos de Osama bin Laden ou do presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad, mas o apelo deste tipo medieval de islamismo é muito limitado. Em vez de grandes idéias, Rússia e China são impulsionadas pelo nacionalismo, que assume formas bastante diferentes em cada país. A Rússia, infelizmente, optou por uma versão de identidade nacional incompatível com a liberdade dos países às suas fronteiras; temo que a Geórgia não seja a última ex-república soviética a sofrer por causa do orgulho ferido de Moscou. Mas a Rússia de hoje é ainda muito diferente da antiga União Soviética. Putin tem sido chamado de czar contemporâneo, comentário que está muito mais próximo da realidade do que comparações com Stalin ou Hitler. A Rússia czarista era uma grande potência de ambições limitadas que se tornou parte integral do sistema europeu de Estados dos séculos 18 e 19 mesmo enquanto esmagava os Estados fracos nas suas fronteiras e privava seu próprio povo de liberdades. É nesta direção que espero que se dê a evolução da Rússia pós-Putin. O nacionalismo chinês, em orgulhosa exibição durante as Olimpíadas, é muito mais complexo. Os chineses querem respeito por terem tirado da pobreza centenas de milhões de cidadãos na geração passada. Mas ainda não sabemos como este sentimento de orgulho nacional será traduzido em termos de política externa. Apesar das tensões com Taiwan, a China não sofre do tipo de ressentimento que a Rússia nutre por causa do encolhimento de seu império ou da expansão da Otan dentro do antigo bloco soviético. E Pequim se verá bastante ocupada quando a inevitável desaceleração econômica ocorrer. MODELO CHINÊS O problema da China hoje é a falta de uma noção bem articulada daquilo que o país representa no mundo mais amplo, coisa que não lhe faltava na época imperial. O chamado consenso de Pequim, que mistura um governo autoritário a uma economia de mercado, é popular em muitos países em desenvolvimento, e com razão: de acordo com as regras de Pequim, as lideranças nacionais podem simplesmente fazer negócios e ganhar dinheiro, sem se importar com a democracia ou os direitos humanos. Mas o modelo de desenvolvimento chinês só funciona bem nas partes da Ásia Oriental que compartilham de certos valor culturais chineses. Na China dinástica não havia freios e contrapesos para restringir o poder do imperador - em vez disso, um sentido de responsabilidade foi promovido pela educação moral dos dirigentes e por uma elite burocrática orientada para o serviço público. Este legado sobrevive numa série de líderes modernizadores e voltados para o desenvolvimento, desde a aristocracia Meiji que fundou o Japão moderno até líderes autoritários mais recentes, como Park Chung-hee, da Coréia do Sul, e Lee Kwan Yew, de Cingapura - e os atuais líderes chineses. Mas este tipo de condução paternalista é muito distante das formas de governo observadas em boa parte da África, América Latina e Oriente Médio, onde os autoritários de inspiração para o serviço público foram muito mais raros. A África teve cleptocratas como Mobutu Sese Seko, do Zaire, senhores da guerra como Foday Sankoh em Serra Leoa e Charles Taylor na Libéria, e os regentes nigerianos, de uma corrupção mais corriqueira. Não faz sentido simplesmente agrupar a China junto às outras ditaduras mundiais. Mas apesar de toda a força da China, o seu sistema não chega a ser um verdadeiro desafio às idéias animadoras - e vencedoras - dos EUA. Tudo isto faz de nosso mundo ao mesmo tempo mais seguro e mais perigoso. É mais seguro porque o interesse próprio das grandes potências está muito atrelado à prosperidade da economia global como um todo, limitando o seu desejo de balançar o barco. Mas é mais perigoso porque os autocratas capitalistas podem enriquecer muito mais e portando obter muito mais poder do que os seus equivalentes comunistas. E se a racionalidade econômica não atropelar a paixão política (como foi o caso com freqüência no passado), a interdependência toda do sistema determina que todos sofrerão. Não podemos deixar que as especulações quanto a um ressurgimento do autoritarismo nos distraiam de um problema fundamental que determinará certamente a nova era da política mundial: se os ganhos na produtividade econômica vão acompanhar a demanda global por commodities tão básicas quanto o petróleo, a comida e a água. Caso isto não ocorra, entraremos num mundo muito mais malthusiano, de soma igual a zero, no qual o ganho de um país será a perda de outro. Uma ordem global pacífica e democrática será muito mais difícil de se obter nestas circunstâncias: o crescimento dependerá mais do poder puro e dos acidentes geográficos do que das boas instituições. E o aumento na inflação mundial sugere que já caminhamos um bom pedaço do caminho na direção deste mundo. As ditaduras totalitárias do século 20 nos induziram a estabelecer distinções claras entre Estados democráticos e autoritários, um vício de pensamento que ainda nos acompanha. Mas as democracias não têm automaticamente todas os mesmos interesses (basta observar as visões conflitantes dos EUA e da Europa quanto ao Iraque), e o mesmo pode ser dito das autocracias. O fato de um país ser autoritário não determina o seu comportamento internacional. Precisamos de uma estrutura conceitual muito mais matizada para compreender o mundo não-democrático se não quisermos nos tornar prisioneiros de um passado imaginário. E não devemos desanimar excessivamente em relação às nossas próprias idéias e acreditar mais na força delas, mesmo num mundo "pós-americano". TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL *Francis Fukuyama é professor na Universidade Johns Hopkins. Seu mais recente livro intitula-se "A América na encruzilhada: Democracia, poder e o legado neoconservador".

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