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É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

Opinião|Desastre autoinfligido 

Crise venezuelana tem origem em uma óptica inerente ao populismo, segundo a qual tudo deve estar subordinado à política, à ideologia e à vontade

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Atualização:

A Venezuela de Nicolás Maduro reúne o pior de todos os mundos: repressão sanguinária, perpetuação no poder, arremedo de democracia e total desordem econômica. Dono das maiores reservas de petróleo do mundo, o país não tem dólares para importar comida e remédios. As reservas em moeda forte somam US$ 10 bilhões. A Argentina tinha seis vezes isso quando recorreu ao Fundo Monetário Internacional, há duas semanas. A do Brasil é 38 vezes maior.

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Embora o assunto já pareça gasto, acho muito importante fixarmos como e por que a Venezuela chegou a isso. Fui muitas vezes ao país, a partir da tentativa de golpe de abril de 2002 - que desencadeou a guerra do regime contra a iniciativa privada -, a última delas na fraudulenta eleição da Assembleia Nacional Constituinte, em julho do ano passado.

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A tentativa de golpe contra Hugo Chávez foi promovida pelos militares, em conluio com o empresariado, como ficou claro quando a bancada da oposição na Assembleia Nacional nomeou presidente da república Pedro Carmona, então presidente da Fedecámaras, a associação de empresas. Os chavistas no Exército e no governo conseguiram reverter o golpe.

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Retrocesso

Depois, veio a greve da PDVSA, a estatal do petróleo, contra o governo, entre dezembro de 2002 e fevereiro de 2003. Sentindo-se sob ataque da elite econômica, Chávez se lançou então no desmonte do capitalismo venezuelano.

Crise na Venezuela faz com que dormir renda mais que trabalhar

A PDVSA foi dizimada, com seus engenheiros, gerentes e diretores substituídos por militantes cuja lealdade ao regime era inversamente proporcional a sua capacitação para gerir uma empresa de tamanha importância e exigência técnica. 

Só de 2014 para cá, a produção de petróleo caiu 33%. E ela responde por 95% do ingresso de moeda forte. Paralelamente, o parque industrial, agrícola e comercial do país sofreu um desmonte, com uma política econômica desastrosa, associada a intervenções, multas, devassas tributárias arbitrárias, desapropriações e prisões de empresários. 

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Segundo a Consecomercio, que representa os setores de comércio e serviços, desde 2002, o número de empresas na Venezuela encolheu de 830 mil para 250 mil. Imagine o impacto disso: 580 mil empresas, ou 70% do total, fechadas. 

No lugar de toda essa atividade econômica, Chávez procurou colocar o ativismo do Estado. Centenas de milhares de venezuelanos passaram a viver de bolsas do governo, atuando nas “Misiones”, que combinavam trabalhos sociais com doutrinamento ideológico e controle político da população venezuelana. 

Na verdade, isso foi a radicalização do que já se fazia na Venezuela: a riqueza do petróleo continuou sendo concentrada na nova elite política, e uma parte (talvez agora maior) canalizada de forma assistencialista para a população, gerando nela dependência do governo e lealdade política. 

Populismo

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As diferenças foram: a ideologia e o carisma de Chávez, que fizeram muitos venezuelanos sentirem que pela primeira vez um presidente se importava com eles; o desmantelamento da PDVSA e dos outros setores produtivos. Quando o petróleo caiu de preço, a economia entrou em colapso. 

Os economistas da esquerda populista parecem ter matado a aula sobre os ciclos econômicos. Deixaram os governantes gastar como se o superciclo das commodities fosse eterno. O mesmo aconteceu no Brasil, na Argentina, na Bolívia e no Equador. 

Nos países democráticos, isso levou à alternância no poder - seja por impeachment ou por eleição. Os outros aprofundaram o autoritarismo. O Equador tomou um caminho inesperado, porque o presidente Lenín Moreno, que era vice de Rafael Correa, afastou-se dele depois de se eleger.

No entanto, é importante notar que todo esse desastre autoinfligido partiu de um desprezo pelos aspectos técnicos. E de uma óptica, inerente ao populismo, segundo a qual tudo deve estar subordinado à política, à ideologia e à vontade. Não deve. Atropelar as regras da engenharia, da gestão e da economia só pode terminar em desgraça. 

Opinião por Lourival Sant'Anna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais

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