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Diante de cortes de salários e ameaças de Trump, funcionários da ONU entrarão em greve 

Considerados os funcionários públicos mais bem pagos do mundo, eles protestam contra corte de 7,5% anunciado pela organização diante da pressão do governo americano em suspender parte da contribuição para os trabalhos da entidade

Por Jamil Chade , correspondente e Genebra
Atualização:

GENEBRA - Os funcionários da Organização das Nações Unidas (ONU) entrarão em greve diante de cortes de salários e da ameaça do governo de Donald Trump de suspender parte da contribuição para os trabalhos da entidade. Nesta sexta-feira, 16, as reuniões da Assembleia Anual da OIT, do Conselho de Direitos Humanos e de outros organismos serão suspensas e devem ser retomadas apenas na segunda-feira.

Para não criar polêmica, o ato está sendo chamado apenas de “paralisação”, acompanhada por uma reunião dos funcionários em uma das salas do prédio da ONU em Genebra como forma de protesto. 

Cartazes contra o corte de salários previsto para agostosão vistos pelos corredores do prédio da ONU Foto: Jamil Chade/Estadão

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Considerados os funcionários públicos mais bem pagos do mundo, a equipe terá seu salário cortado em 7,5% a partir de agosto. A decisão da redução de pagamentos já foi votada e faz parte de uma reforma da entidade, exigida pelos EUA. Contudo, ela foi duramente criticada por funcionários que, por décadas, evitaram greves ou protestos. 

Para o sindicato dos funcionários, a decisão representa a perda de um salário por ano, o que é "inaceitável". “Estamos falando de uma das cidades mais caras do mundo”, alertou Ian Richards, que lidera o sindicato em Genebra. Segundo ele, os salários que serão afetados envolvem pagamentos mensais de US$ 10 mil a US$ 12 mil. “A ONU precisa dos melhores especialistas”, disse, acrescentando que sem um salário “competitivo” muitos poderiam ir ao setor privado.

Na administração, a cúpula já fala abertamente em retirar da Suíça alguns dos serviços e transferir para países mais baratos.Mas os funcionários alertam que, enquanto os cortes são realizados, os governos aprovaram um projeto para reformar o prédio da ONU em Genebra por US$ 830 milhões até 2023. 

Incerteza

Entre diplomatas americanos, há quem critique a greve. Eles apontam que, sem pagar impostos por sua condição de funcionários internacionais, o corpo técnico e especializado da entidade ainda conta com subsídios para bancar aluguel, saúde gratuita para toda a família e bolsas até para cursos universitários aos seus dependentes. Se, em um ano, o custo da escolaridade de um dos filhos de funcionários custa US$ 40 mil em uma escola privada, a ONU cobriria cerca de US$ 30 mil. Genebra tem um dos melhores sistemas de educação pública do mundo. 

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Ainda assim, o corte de salários levou a uma nova situação dentro da ONU. Pelos corredores, cartazes vermelhos contrastam com a diplomacia discreta e os trajes elegante que imperam nas reuniões. Neles, os funcionários mostram resistência aos planos de cortes. Em diferentes departamentos, as contratações estão congeladas, enquanto auditores solicitam a todos os gerentes que façam uma revisão de gastos e até mesmo optem por cortar programas de ajuda humanitária. 

O clima de incerteza tem uma explicação: a pressão feita pelo governo de Donald Trump para que o orçamento da entidade seja reduzido de forma importante e para que acordos sejam revistos. A decisão da Casa Branca de romper com o Acordo de Paris foi uma demonstração clara a todos os demais setores de que não existe mais qualquer garantia do envolvimento americano no sistema multilateral ou da permanência de um tratado.

Mas antes mesmo da decisão desta semana, é no bolso que a ONU já descobriu que Trump pode ameaçar seu trabalho. Com uma dívida crônica, a entidade apenas mantém parte de seus serviços graças às contribuições dos EUA. Com a proposta de Trump de fechar a torneira para a entidade, a administração das Nações Unidas está sendo agora obrigada a refazer suas contas.

O corte de ajuda americana já deixou de ser um assunto confidencial. Stephane Dujarric, porta-voz do secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, alertou que uma redução da contribuição americana poderia minar os esforços de longo prazo, principalmente no combate ao terrorismo. “Todos concordam na necessidade de combater o terrorismo de forma eficiente. Mas acreditamos que precisamos mais do que gastos militares”, disse.Segundo ele, o recrutamento de jovens para grupos radicais apenas vai parar quando houver desenvolvimento, investimentos e respeito aos direitos humanos. 

Para ele, o corte proposto por Trump tornaria “impossível” a manutenção do trabalho essencial da ONU hoje para temas como desenvolvimento social, manutenção da paz e em outros setores. 

Orçamento

A cada ano, o governo americano destina US$ 10,4 bilhões para organismos internacionais. Desse total, 80% vai para a ONU. No caso das operações de paz, elas consomem mais de US$ 7 bilhões dos recursos dos EUA. 

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Entretanto, a proposta de orçamento de Trump promete chacoalhar essa realidade. “Proponho reduzir o financiamento à ONU e suas agências filiadas, incluindo operações de paz e outras organizações internacionais”, diz o projeto da Casa Branca, que sugere que a conta seja melhor repartida entre os 193 países das Nações Unidas. Hoje, os americanos representam 25% do orçamento global da entidade. 

Ao explicar a proposta de orçamento, a Casa Branca é clara. “Nosso objetivo é o de atender às demandas de nossos cidadãos”. Mas, segundo diplomatas ouvidos pelo Estado, o que ela não explica é que a proposta prevê um aumento substancial do orçamento militar, cortando em US$ 19 bilhões o envelope para a diplomacia. 

Ainda que a esperança na direção da ONU seja de que o Congresso americano modifique partes do orçamento, o impacto em diversas áreas já começa a ser calculado. Para a África, os recursos totais do Departamento de Estado seriam reduzidos em US$ 11 bilhões, um corte de 30%. Todo o dinheiro para a Fundação para o Desenvolvimento Africano, de US$ 28 milhões, seria eliminado. 

No Programa Mundial da Alimentação, um corte ainda afetaria a distribuição de comida para 600 mil refugiados no Chifre da África. Na esperança de manter a ajuda americana, Guterres nomeou um aliado de Trump para o cargo: o republicano David Beasley, que foi peça fundamental na campanha eleitoral do presidente. Na semana passada, o político americano admitiu que o debate sobre o orçamento dos EUA para a ONU será “uma briga de cachorros” no Congresso. 

Enquanto isso, o coordenador humanitário da ONU, Stephen O'Brien, alerta que a entidade vive “a pior crise humanitária de sua história” e precisa de mais de US$ 4,4 bilhões apenas para resgatar 20 milhões de pessoas à beira da morte em razão da fome. Em março, apenas 10% desses recursos haviam sido depositados nos cofres da ONU.

“Quanto mais dramático for o corte de orçamento, maior será o sofrimento”, alertou o porta-voz da agência da ONU na África, David Orr.

Clima

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No setor ambiental, os cortes seriam ainda mais dramáticos. De forma geral, a Agência de Proteção Ambiental teria uma redução de orçamento de 31%, para um total de US$ 5,7 bilhões. Mas o que ficaria para a ONU seria quase zero. “Proponho eliminar a Iniciativa Global para Mudanças Climáticas (GCCI) e parar com o pagamento para a os programas de mudanças climáticas da ONU”, indicou a proposta de orçamento apresentada na semana passada. 

Pela GCCI, o governo americano é o maior financiador da Convenção para Mudanças Climáticas, pagando por 20% de todo seu orçamento. A mesma iniciativa é quem garante os recursos para o Protocolo de Montreal, que protege a camada de ozônio.

A proposta também prevê a “eliminação” dos recursos americanos para o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), organismo que ganhou o Prêmio Nobel da Paz e que reúne os maiores cientistas do mundo para estudar o impacto das mudanças climáticas. 

Trump também quer suspender a promessa americana de dar US$ 3 bilhões ao Fundo da ONU para o Clima, que garantiria recursos para ajudar os países em desenvolvimento a se preparar para uma transição de modelo produtivo.

Nas missões de paz, o financiamento americano deve ser reduzido em US$ 1 bilhão. Na África, o impacto promete ser profundo. Em locais como a República Democrática do Congo, Sudão ou Sudão do Sul, a contribuição americana chega a 40% do orçamento dos cascos azuis. Numa carta enviada no mês passado aos demais membros do Conselho de Segurança, o governo americano pediu que todos refletissem sobre a manutenção ou não de 17 operações de paz pelo mundo. 

O Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur) também está ameaçado. Ele recebe anualmente mais de US$ 1,2 bilhão dos EUA, e em acampamentos como Dadaab, no Quênia, o corte de recursos já é uma realidade. 

Ao Estado, o porta-voz do Acnur, Andrej Mahecic, admitiu que, no Iraque, a entidade conta com apenas 21% do orçamento necessário para lidar com a crise e 3 milhões de pessoas deslocadas. Em diversos locais, os serviços básicos deixaram de ser oferecidos. “A falta de dinheiro é crônica e, em alguns casos em regiões africanas, temos menos de 10% dos recursos necessários”, disse. 

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Para a cúpula da ONU, o corte não é apenas uma teoria. A Casa Branca já anunciou que eliminou o financiamento à agência internacional que lida com saúde reprodutiva e planejamento familiar, o Fundo de Populações das Nações Unidas (UNFPA). Para a administração de Trump, a entidade permite políticas que dão brechas ao aborto e, portanto, violam os princípios que a Casa Branca promete aplicar.

No caso da UNFPA, com ampla atuação no Brasil, a contribuição americana chegava a US$ 75 milhões. O dinheiro serve para financiar serviços para atenção à grávidas, mulheres e crianças pelo mundo. Para o Fundo Global contra Aids, Tuberculose e Malária, o corte ainda será de US$ 222 milhões. 

Diante dos cortes, Guterres vem se reunindo com dezenas de interlocutores e parceiros de outros países para alertar que as medidas nos EUA podem não apenas afetar programas específicos, mas a própria capacidade do sistema multilateral em dar respostas às crises internacionais. 

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