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Dificuldades logísticas impedem África de aplicar bilhão de doses doadas

História da vacinação contra a covid-19 no continente vai muito além de uma questão de fornecimento

Por Yasmeen Abutaleb e Lesley Wroughton
Atualização:

WASHINGTON — O presidente Joe Biden refutou na segunda-feiras, 29, críticas de que os Estados Unidos estão armazenando doses de vacinas contra o coronavírus em detrimento de ajudar a África do Sul e outros países de renda baixa ou média, apontando para o fato de o governo sul-africano ter recusado doações de doses adicionais recentemente.

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Mas a história da vacinação contra a covid-19 na África é muito mais complicada do que uma questão de fornecimento — uma realidade que ficou evidente à medida que a disponibilidade das vacinas emergiu como uma questão crucial nos dias que se seguiram à identificação, no sul da África, da potencialmente perigosa nova variante do coronavírus, batizada de Ômicron.

Essa história inclui questões relacionadas a acesso, sistemas frágeis de assistência de saúde e à dificuldade de garantir que as vacinas da Pfizer sejam conservadas em temperaturas ultrageladas.

A África do Sul encara muitos desafios similares aos enfrentados pelos EUA nos primeiros dias da campanha de vacinação e até hoje. A África do Sul só iniciou seus esforços de vacinação em maio, seis meses depois dos EUA e outros países ocidentais. E tem lutado para conseguir vacinar populações de áreas remotas e enfrentado hesitação em relação às vacinas da mesma maneira que os EUA e vários países europeus.

“Por que deveríamos nos surpreender por ter de educar as pessoas em relação às vacinas e realizar intervenções comportamentais na África do Sul quando isso também é um peso por aqui?”, perguntou Saad Omer, diretor do Instituto Yale para Saúde Global. “Ainda não conseguimos isso nos EUA.”

O governo dos EUA emprega “tantas pessoas para entender essas soluções de ponta a ponta — de aumentar o fornecimento até vacinar as pessoas — e ninguém sabe onde encontrá-las” na África, afirmou Omer.

Adolescente é imunizado contra a covid-19 na Cidade do Cabo, África do Sul; crise da vacina no continente vai além de problemas de fornecimento Foto: Nardus Engelbrecht/AP

Especialistas afirmaram que a variante Ômicron, cuja ocorrência foi confirmada em diversos países, é uma consequência previsível da vasta desigualdade vacinal. Eles pedem que os EUA, países europeus e organismos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde, se esforcem mais para enviar vacinas para países de renda baixa ou média.

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Enquanto grandes quantidades de pessoas continuarem sem se vacinar, argumentam especialistas, o coronavírus terá oportunidade de sofrer mutações e continuar se espalhando. A origem da variante Ômicron continua incerta.

A farmacêutica Pfizer afirmou que cinco dos oito países incluídos no banimento a viagens imposto pelos EUA — Malawi, Moçambique, Namíbia, África do Sul e Zimbábue — pediram para a empresa suspender o envio de vacinas em razão de dificuldades na distribuição e aplicação das doses.

A empresa afirmou esperar que, até o fim deste ano, consiga enviar 43 milhões de doses para os oito países africanos banidos pelos EUA.

“Dado que temos estoque suficiente disponível no país, não faz sentido receber mais encomendas, então adiamos alguns pedidos para o começo do ano que vem. Estamos bem abastecidos neste momento”, afirmou Ron Whelan, diretor da força-tarefa para covid-19 na Discovery Ltd., empresa de seguros-saúde envolvida na distribuição de vacinas na África do Sul. A Discovery trabalhou em conjunto com governo sul-africano para adquirir vacinas e montar um sistema de distribuição no país.

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Whelan afirmou que a campanha de vacinação na África do Sul atingiu um pico de aproximadamente 211 mil vacinações diárias. Em setembro, a média diária de vacinações caiu para cerca de 110 mil por dia.

Ele apontou para três fatores: uma significativa hesitação em relação às vacinas, apatia e barreiras estruturais, que incluem o fato de muitas pessoas não conseguirem arcar com custos de transporte até os postos de vacinação. Ele também notou que o programa sul-africano de vacinação começou seis meses depois das campanhas nos países ocidentais, que começaram a vacinar as pessoas pouco depois de as vacinas Pfizer-BioNTech e Moderna terem sido autorizadas, em dezembro de 2020.

“Posso lhe dizer que foi extremamente difícil conseguir acesso às vacinas, especialmente quando tínhamos países como Canadá e EUA e vários outros encomendando vacinas com bem mais antecedência e em quantidades três a quatro vezes maiores do que necessitavam”, afirmou Whelan.

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A Casa Branca afirmou na segunda-feira que várias agências federais americanas estão trabalhando com especialistas e instituições africanas para prover recursos e apoio técnico e financeiro para expandir o acesso a vacinas na região. O governo americano afirmou que forneceu mais de US$ 273 milhões por meio da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID) para países africanos, incluindo cerca de US$ 12 milhões para a entrega e distribuição de vacinas.

Projeta-se que somente cinco países africanos — menos de 10% do continente — atingirão a meta de vacinar completamente 40% de sua população até o fim deste ano, a não ser que o ritmo das vacinações acelere. A África vacinou completamente 77 milhões de pessoas, o equivalente a apenas 6% de seus habitantes.

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Aproximadamente 60% da população dos EUA foi completamente vacinada, e mais de 40 milhões de americanos receberam doses de reforço, de acordo com acompanhamento do Washington Post. Na África do Sul, cerca de 35% da população foi completamente vacinada, segundo o Departamento de Saúde sul-africano, um índice mais elevado do que na maioria dos países africanos. Apenas 3% dos habitantes do Malawi, por exemplo, foram completamente vacinados, segundo o site Our World in Data.

O número de americanos que receberam doses de reforço excede o número de pessoas que tomaram a primeira dose nos oito países africanos banidos pelos EUA somados, de acordo com análise publicada na segunda-feira pelo Public Citizen, um grupo de defesa de direitos do consumidor. Cerca de 30 milhões de habitantes de Botsuana, Suazilândia, Lesoto, Malawi, Moçambique, Namíbia, África do Sul e Zimbábue receberam pelo menos uma dose, segundo a análise.

Países com mais ricos se comprometeram a doar 1,98 bilhão de doses ao redor do planeta; os EUA prometeram fornecer mais da metade dessas doses — 1,1 bilhão. Cerca de 25% dessas doses já foram entregues.

Especialistas em saúde global afirmaram que uma confluência de fatores — incluindo às vezes imprevisibilidade nas entregas de vacinas por parte dos fabricantes e capacidade limitada em assistência médica — criou dificuldades para garantir que as doses chegassem aos braços das pessoas. Muitos países, incluindo a África do Sul, também passaram vários meses sem receber nenhuma dose e posteriormente receberam milhões de uma vez, o que sobrecarregou seus sistemas de saúde.

Nos EUA, o governo Trump estabeleceu a Operação Warp Speed, não apenas para fabricar milhões de doses de vacina, mas também para ajudar a distribuí-las rapidamente, em uma escala sem precedentes. Esse esforço enfrentou desafios significativos durante as primeiras semanas da campanha americana de vacinação, mesmo com o Departamento de Defesa e o Departamento de Saúde e Serviços Humanos trabalhando para aproveitar a infraestrutura logística dos militares.

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“Houve uma razão para a Operação Warp Speed não ter simplesmente feito uma encomenda à Pfizer e obtido vacinas. Havia toda uma infraestrutura de desenvolvimento massivo de vacinas, expansão da produção de vacinas e soluções de logística para sua entrega”, afirmou Zain Rizvi, diretor de pesquisa do Public Citizen.

“O dado que sempre fica na minha cabeça é que a vacina da Pfizer foi autorizada em 11 de dezembro…Imagine se em 11 de dezembro do ano passado o governo americano declarasse que estava lançando a Operação Warp Speed em todo o mundo”, acrescentouRizvi.

Faltam a muitos países africanos refrigeradores capazes de armazenar apropriadamente vacinas como a da Pfizer, que precisam ser guardadas em temperaturas ultrageladas. Com algumas doações de vacinas próximas à data de expiração, alguns países sentem que não têm tempo suficiente para distribuí-las e aplicá-las com segurança, afirmam especialistas. Whelan afirmou que, enquanto a África do Sul possui equipamentos suficientes para armazenar vacinas como a da Pfizer, a maioria dos países africanos não conta com esse tipo de recurso.

“O fornecimento continua um aspecto importante, mas é hora de dar atenção à distribuição das doses”, afirmou Amanda Glassman, pesquisadora-sênior do Centro para o Desenvolvimento Global. “Seria ótimo termos mais claridade a respeito de quantas vacinas temos num determinado momento, o que estamos fazendo para distribuí-las e se estamos utilizando todas as estratégias possíveis para distribuí-las.”

A África, segundo maior continente do mundo em tamanho, consiste de 54 países, cada qual com seus próprios desafios para obter e distribuir vacinas. Enquanto a África do Sul luta contra a hesitação, entre outros problemas, outros países distribuíram as doses que receberam com relativa rapidez e solicitaram mais vacinas. Em Botsuana, pesquisas nacionais mostraram que o índice de aceitação das vacinas é de 76%, informou Malebogo Kebabonye, diretora de serviços sanitários do Ministério de Saúde e Bem-Estar de Botsuana, à Organização Mundial da Saúde.

“Argumentos relativos a distribuição e aceitação das vacinas foram transformados em armas contra a expansão do fornecimento”, afirmou Rizvi. “Ninguém fala que o Canadá não merece receber vacinas porque há desafios relativos a hesitação nos EUA, mas, de alguma maneira, uma afirmação desse tipo é aceitável em relação ao continente africano.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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