Dils passou metade da vida preso. Agora, é inocente

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Por Agencia Estado
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Um homem condenado duas vezes ? na primeira vez à prisão perpétua; na segunda, a 25 anos de cadeia -foi inocentado hoje em um novo julgamento. Saiu da prisão onde já havia passado 15 anos ? ou metade de sua vida, já que Patrick Dils tinha 16 anos quando foi preso, em 1987. A Justiça, portanto, numa atitude pouco comum, reconheceu seu erro. E que erro! Foi uma falha do mesmo porte do crime atribuído a Dils. O jovem aprendiz de cozinheiro fora acusado de ter assassinado e dilacerado a golpes de pedra duas crianças de oito anos de idade. Que provas havia? Nenhuma. É inacreditável. Nunca acharam nada que pudesse condená-lo. Nada, absolutamente nada. Ou melhor, havia uma prova sim: a "convicção íntima" dos policiais que interrogaram o jovem Dils depois que as duas jovens vítimas foram encontradas. E de onde vinha essa "convicção íntima"? Durante os interrogatórios, Dils fizera confissões terríveis. Contudo, basta olhar para Patrick Dils hoje, aos 31 anos, para ver que tais confissões merecem uma reavaliação profunda. O que vemos hoje não é uma besta-fera, e sim um nefelibata, um indivíduo calado, impassível, de olhar esgazeado, incapaz de se defender, um animal tristonho e esquálido de olhos esbugalhados diante da luz que romperam as trevas em que se encontrava. Hoje, essa espécie de zumbi é um homem de 32 anos moldado e endurecido por 15 anos de cadeia. Como seria na época, aos 16 anos, quando a mandíbula infernal cravou nele os dentes? Quem era Dils no momento em que os policiais o interrogaram, o acuaram e o perseguiram como se fora ele uma caça ensandecida encurralada em um canto qualquer? Desde 1987, um psiquiatra mais sutil do que os demais vem dizendo: "Era um jovem movido pelo dever de agir em função daquilo que esperavam dele". Estranho, não é? De forma alguma. Todos os psicólogos sabem que existem seres frágeis, orgulhosos ou tímidos que outra coisa não fazem a não ser confessar aquilo que os policiais lhes pedem que confessem. Dostoievski sabia disso quando escreveu Crime e Castigo. Foi um jovem de olhar vago que vimos acatar, incrédulo, o veredicto de sua inocência. Olhou em seguida para todos os lados como se quisesse se certificar de que o mundo existia, que havia uma realidade. Depois, esse ser "massacrado" e "humilhado" falou pela primeira vez. Ele, que ao longo de três processos fora incapaz de dizer ao menos uma palavra que fosse para se defender, recuperou a fala. E que fala doce, calma, surpreendentemente inteligente, bem organizada. Não havia sombra alguma de ódio ou de rancor. "Sinto-me terrivelmente cansado, desgastado. Estou feliz por poder tentar viver novamente". Em seguida, olhando em direção aos pais das crianças assassinadas, disse: "Lamento muito ter feito vocês sofrerem com minhas mentiras." O que ele quis dizer com "minhas mentiras"? Em outras palavras, Dils quis dizer que "há quinze anos, eu era muito frágil, e confessei um crime que fez vocês sofrerem. Perdoem-me, por favor." Assim, longe de demonstrar rancor, ele pede perdão, porque não soube dizer que era inocente. E conclui: "Não tenho ódio de ninguém. Sou inocente. Não tirei a vida de seus filhos. Desejo um dia ter filhos também. Eu os amo muito por ter lhes causado tanto mal." É claro que tudo isso poderia ser mentira, e Dils pode ter sido realmente o autor do crime. No entanto, é importante ressaltar que se fosse possível reabrir o processo (um procedimento muito raro), encontraríamos um testemunho muito sólido de que, no dia do crime, um serial killer ? atualmente preso por vários crimes idênticos ? foi visto exatamente no local da tragédia com o rosto coberto de sangue. Portanto, como não é possível jurar que Dils seja inocente, o caso continua aberto a dúvidas. Há duas perguntas decisivas que caberia ao judiciário responder: Em primeiro lugar, é possível que a justiça faça seu trabalho "de qualquer jeito"? Como é que os policiais puderam obrigar uma pessoa indefesa a confessar o que não fez? Em segundo lugar, a "pena de morte" foi abolida na França. O que teria acontecido se ela ainda estivesse em vigor? Patrick Dils teria sido guilhotinado 15 anos atrás. Um provável inocente teria sido cortado em dois pedaços.

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