Disputa com governo divide imprensa argentina entre 'opositora' e 'governista'

Agressões com motivações políticas se tornaram frequentes no país, e jornalistas reclamam da falta de entrevistas por parte de integrantes do governo.

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Por Marcia Carmo
Atualização:

O jornalismo independente na Argentina parece estar em baixa. A disputa entre o governo da presidente Cristina Kirchner e a imprensa acabou dividindo, perante a opinião pública, as empresas de comunicação e jornalistas do país entre "governistas" e "opositores". Na véspera do dia do jornalista, comemorado nesta quinta-feira, Cristina criticou as agressões a uma equipe da emissora estatal Canal 7, durante um "panelaço" contra o governo em Buenos Aires. Os repórteres foram identificados como "governistas" pelos manifestantes. E o ataque foi mais um capítulo na tensa relação entre grupos políticos distintos na Argentina. As agressões, no entanto, também são direcionadas a jornalistas considerados "oposicionistas". Nas últimas semanas, apareceram em vários pontos de Buenos Aires cartazes com o rosto de Daniel Santoro, editor de política do jornal Clarín, o de maior tiragem do país e identificado como "opositor". No cartaz, Santoro era chamado de "espião russo". Segundo a organização Foro de Periodismo Argentino (Fopea), em 2011 foram registrados 122 casos de agressão a empresas de comunicação e jornalistas, incluindo denúncias de antenas de rádio derrubadas por serem criticas do governo. A tensa relação entre governo e imprensa também foi apontada no recente relatório de direitos humanos do Departamento de Estado americano. Clarín Para o jornalista e escritor Ceferino Reato, editor da revista Fortuna, do grupo Perfil, "as definições e a divisão (de empresas de comunicação e jornalistas governistas e opositores) existem e são alimentadas pelo próprio governo a partir de sua briga com os jornais Clarín e La Nación". Santoro, por sua vez, afirmou que "não existem santos" nesta discussão, que envolve governo, empresas e jornalistas, mas ressalvou: "O papel do jornalista é ser crítico, é investigar e estar atento às medidas do governo. Mas o governo não vê o jornalismo dessa forma". Para os entrevistados pela BBC Brasil, a disputa ganhou impulso após o suposto apoio, em 2008, do jornal Clarín aos produtores rurais, durante os protestos do setor agrário contra o governo. O jornal acabou virando alvo da nova Lei de Audiovisual, que obrigará o grupo a se "desfazer" de parte de suas empresas a partir de dezembro, como lembrou a presidente em um discurso, na semana passada. Cartazes com os dizeres "Clarín mente" também já se tornaram corriqueiros e são ostentados até mesmo por ministros e pelo vice-presidente, Amado Boudou, ou nos muros do país. Defensores da causa Profissionais de imprensa apontam a existência de um jornalismo militante no país, nos dois lados, o que aparentemente contradiria os princípios de independência jornalística. Um funcionário da emissora estatal Canal 7, que não quis se identificar, atribuiu a divisão à defesa das políticas do governo. "Os da situação apoiam a causa (do governo), e os da oposição, não", disse. Outro jornalista, que também não quis revelar o nome, defende sua opção "governista". "Seria uma loucura não apoiar projetos do governo, como a reabertura dos processos de crimes contra direitos humanos cometidos na ditadura, assim como o casamento das pessoas do mesmo sexo e a oposição aos organismos internacionais, principalmente o FMI", disse. "Queremos perguntar" Outra reclamação dos jornalistas é sobre a falta de acesso da imprensa a ministros e à presidente. Desde que assumiu o governo, há cinco anos, Cristina deu uma única entrevista coletiva. E fatos de rotina em outros países, como a divulgação da agenda das autoridades da administração central, não existem na Argentina. Para a senadora opositora e jornalista Norma Morandini, "o governo prefere os discursos às entrevistas à imprensa" e "vê os jornalistas independentes como opositores". Na sua opinião, a presidente vê o jornalista independente como um "inimigo" e tem a mesma visão em relação ao "opositor político". "O governo entende que críticas correspondem aos inimigos e divide a sociedade de forma perigosa", disse Morandini. Há poucos dias, Cristina justificou a preferência por discursos e a ausência de entrevistas coletivas dizendo que não falaria mal dela mesma. A comunicação unilateral da presidente motivou um protesto pouco comum por parte da imprensa. Há duas semanas, dezenas de jornalistas de diferentes meios formaram um coro no programa Periodismo Para Todos (Jornalismo Para Todos), do jornalista Jorge Lanata, para dizer: "Queremos perguntar". Apesar da polarização, especialistas, jornalistas e políticos ouvidos pela BBC Brasil disseram que existe liberdade de expressão na Argentina. "Sempre me perguntam se existe liberdade de expressão. Digo sim, apesar de coisas complicadas, como a distribuição arbitrária da publicidade oficial, a escassez de entrevistas coletivas, a falta de uma lei de acesso à informação pública", disse o diretor executivo do Fopea, Andrés D'Alessandro. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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