Na História, líderes que iniciam processos revolucionários raramente são os que, no fim, assumem o poder depois da deposição de regimes. Esse princípio foi confirmado em diversas revoltas. No Egito, o cenário não parece ser diferente. A contestação liderada por jovens de classe média, "ocidentalizados" e moderados, acabou dando força um grupo considerado o mais radical para centralizar o debate político no país: a Irmandade Muçulmana. O problema é que, após obter a maioria nas eleições para o Parlamento, o movimento se choca agora contra o regime militar, que, mesmo depois da queda de Hosni Mubarak, controla o processo de transição egípcio - e dá sinais de que não sairá tão cedo do cenário político.
Veja também: TV Estadão realiza debate; mande suas perguntasMAPA: A revolta que abalou o Oriente Médio OLHAR SOBRE O MUNDO: Imagens da revolução ESPECIAL: Um ano de Primavera ÁrabeAnalistas afirmam que esse confronto definirá o futuro político do país. Muitos dizem que apenas uma segunda revolução concluiria o processo iniciado este ano. Nos últimos dias, a tensão entre esses grupos ganhou uma nova dimensão, com ambos acusando um ao outro de tentar estabelecer uma nova ditadura, enquanto a nova Constituição é desenhada. Porta-vozes da Irmandade Muçulmana confirmaram que devem abandonar o grupo criado para debater a Carta, pois os militares estariam tentando impor uma Constituição que iria contra o que querem os islâmicos: garantia de um Estado laico e sem apoio religioso. O esboço ainda reduziria o Parlamento a pouco mais que uma entidade de consulta, mantendo o real poder nas mãos do presidente.
Há ainda um outro obstáculo, bem mais profundo: o fato de uma parte importante da economia egípcia, como siderúrgicas, portos e empresas, pertencer aos militares. Mubarak pode ter caído, mas o controle do Estado e de seu financiamento ainda está nas mãos da mesma elite.
"Precisamos de uma segunda revolução para que militares sejam condenados por massacres e a economia finalmente passe a ser controlada por civis", afirma Emad Shahin, professor da Universidade de Notre Dame, nos EUA. Altos funcionários do regime de Mubarak de fato foram presos, mas foram acusados por corrupção quase que exclusivamente, não por crimes ou pela repressão aos protestos. Abdel Moneim Said, colunista do jornal Al-Ahram, diz que a transição para uma democracia no Egito ainda exigirá que o cenário político do país desenvolva um "centro moderado", capaz de atender às demandas dos islâmicos e também da elite no poder. "Isso não deve ocorrer no curto prazo. O país está polarizado." Ainda segundo analistas, os egípcios estão perdendo a paciência. A situação econômica não melhorou, as perspectivas de trabalho para os jovens são sombrias e a crise mundial aprofunda o risco de estagnação.
Para cientistas políticos, porém, seja qual for o cenário de uma possível segunda revolta, a realidade é que a Irmandade Muçulmana não poderá ser marginalizada no processo, sob o risco de a transição simplesmente não funcionar.
Criada em 1920, a entidade foi banida em 1954, por sua convicção de transformar o Egito em um Estado islâmico. Nos últimos anos, havia abandonado a violência e insistia em afastar-se de movimentos jihadistas. A estimativa inicial era a de que eles conseguiriam cerca de 20% dos votos nas eleições, mas o Partido Justiça e Liberdade, braço político do movimento muçulmano, obteve quase o dobro, confirmando que o grupo é a maior força política do país.
Nos momentos mais críticos da revolta na Praça Tahrir, a Irmandade adotou uma estratégia que funcionou: não liderou passeatas nem fez discursos inflamados. Na cúpula do grupo, a ordem era a de não assustar o Ocidente. O grupo limitou-se a dar apoio logístico e pedir paciência a militantes mais radicais. Mas, nos bastidores, a entidade já sabia que a queda de Mubarak era sua grande oportunidade.
JAMIL CHADE COBRIU O INÍCIO DA REVOLTA NO EGITO, QUANDO A IMPRENSA ESTRANGEIRA AINDA ERA ALVO DE ATAQUES DE PARTIDÁRIOS DE HOSNI MUBARAK