Professor da Sciences Po e especialista em China da Fundation pour la Recherche Stratégique (Fundação para Pesquisa Estratégica), em Paris, Antoine Bondaz diz que, na pandemia de covid-19, é tão legítimo questionar o papel do país na crise quanto é fácil tentar pôr a culpa na Organização Mundial de Saúde (OMS). Leia sua entrevista.
O que pretende a China com a chamada nova "rota da seda sanitária"?
Em 2015, ela lançou seu projeto de cooperação sanitária. O País queria aumentar sua influência na governança sanitária regional e mundial e ajudar a medicina tradicional chinesa a se internacionalizar. Os objetivos eram organizar fóruns de cooperação sanitária com os países participantes da “Rota da Seda”, com a Associação dos Países do Sudeste Asiático, com a Europa Central e a do Leste e com os árabes. Queria fazer um mecanismo de prevenção e de controle de doenças infecciosas na Ásia Central e na sub-região do Grande Mekong e criar um plano de formação de pessoal de saúde com a Indonésia e o Laos. Ambições de longo prazo de diplomacia sanitária estão definidos no plano Healthy China 2030. O País pretende se tornar importante na produção de equipamentos médicos de diagnósticos e de tratamento e conquistar parte substancial do mercado farmacêutico mundial, facilitando a criação de gigantes nacionais do setor. As autoridades desejam igualmente participar ativamente na governança mundial da saúde e exercer uma influência sobre a elaboração das normas e regras internacionais.
A epidemia de ebola na África Ocidental em 2014 marcou um crescimento em poder de engajamento chinês na diplomacia da saúde?
Em 1963, a China enviou uma primeira equipe médica para a Argélia. Entre os anos 1960 e o fim dos anos 2010, mais de 20 mil profissionais de saúde chineses foram enviados à África e levaram seus cuidados a mais de 200 milhões de pessoas. Entretanto, foi a crise do ebola na África Ocidental em 2014-2015 que foi a ocasião em que a China conquistou uma maior visibilidade como ator da governança mundial no domínio da saúde pública. A China participou pela primeira vez de um esforço internacional em face a uma emergência mundial na saúde. O país contribui financeiramente e com o envio de 1.200 especialistas em saúde. Pela primeira vez, a China se tornava um país de primeiro plano em termos de cooperação sanitária claramente se inserindo em uma lógica de cooperação internacional. De fato, a China e os Estados Unidos cooperaram estreitamente na luta contra a epidemia de ebola que fez mais de 11 mil mortos, principalmente, apoiando a criação de um Centro Africano de Controle e Prevenção de Doenças, em janeiro de 2016. A China se tornou, assim, um parceiro crível ao mesmo tempo em que é cada vez mais percebido como um concorrente em termos de influência na África.
Como o Ocidente deve reagir aos planos chineses ligados à "rota da seda sanitária"?
É fundamental se lembrar que os países ocidentais são de longe os que mais contribuem com a cooperação internacional em matéria de saúde pública e fornecem uma ajuda humanitária, técnica e financeira considerável. Que a China desenvolva sua diplomacia sanitária e participe desse esforço é, evidentemente, uma coisa boa, pois sua contribuição permite melhorar a saúde pública em numerosos países. Os 17 protocolos de acordos bilaterais assinados em 2017 com outros países, assim como o Programa Comum das Nações Unidas sobre o HIV/Aids (ONUSIDA), o Fundo Mundial da Luta contra a Aids, a Tuberculose e a Malária (The Global Fund) e a Aliança Global pelas Vacinas e pela Imunização (Gavi), são evidentemente bem-vindos. As inquietudes ocidentais não são sanitárias, mas políticas, notadamente as relacionadas com a vontade da China de utilizar seu peso econômico e sua diplomacia a fim de aumentar sua influência. Vê-se isso principalmente na ajuda entregue recentemente aos 54 países africanos, por exemplo. Essa ajuda é uma boa coisa, evidentemente, mas a divulgação sobre ela é considerável, principalmente nas redes sociais. E aí, entre os elementos de linguagem dos diplomatas e da mídia chinesa, podemos notar numerosas referências a uma suposta superioridade do modelo de governança chinês e uma crítica ao modelo de governança democrático. É esse aspecto que preocupa muitos diplomatas, pois o objetivo é moldar a opinião pública desses países em relação à China em detrimento dos países ocidentais.
A eleição de Tedros Adhanom em vez do britânico David Nabarro para a OMS simboliza a influência da China? Trump teria razão em acusar a organização?
Como todos os países, a China procura aumentar a sua influência no seio de organizações internacionais a fim de defender melhor seus interesses. A influência crescente dela nas organizações internacionais se traduz pelo aumento de suas contribuições financeiras à ONU (o país é o segundo maior contribuinte atrás dos Estados Unidos e na frente do Japão), mas também pela nomeação de diplomatas chineses para postos-chave, como Qu Dongyu, eleito para dirigir a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) contra a candidatura francesa. A China procura notadamente convencer os países em desenvolvimento de que ela é um porta-voz indispensável em face dos países desenvolvidos. Nós vimos isso claramente quando da eleição para a direção da OMS do etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus no lugar do britânico David Nabarro e da paquistanesa Sania Nishtar, em 2017.O antigo ministro da Saúde e das Relações Exteriores da Etiópia é frequentemente apresentado como alguém próximo à China, mas é necessário não ceder ao comodismo de imaginar que ele seria completamente dependente desse país. Como em todas as organizações internacionais , há na OMS uma luta por influência política e é por demais lógico que a China esteja tentando influenciar a organização. Mas a verdadeira questão é outra: é a da transparência da China em relação à OMS e, principalmente, saber se o país transmitiu a tempo à organização as informações que estavam a sua disposição com relação à epidemia. Ora, se um primeiro caso foi declarado à OMS no dia 31 de dezembro, parece que os primeiros casos teriam aparecido muito antes. Assim como se no dia 20 de janeiro o pneumologista Zhong Nashan anunciava uma muito provável transmissão entre humanos do vírus, as autoridades chinesas pareciam estar persuadidas disso desde o dia 14 de janeiro ou antes ainda. É fácil querer jogar a culpa na OMS. Mas como toda organização internacional, ela depende da contribuição e colaboração de seus membros. Se um país decide não compartilhar informações com a OMS, é difícil obrigá-lo a isso. Se a OMS não teve acesso à região de Wuhan antes do fim de janeiro, apesar dos pedidos, ela não é mais responsável, mas, sim a China que lhe recusou o acesso.
O senhor disse que a China aumentou sua capacidade de produção de equipamentos médicos de proteção, de máscaras, e de respiradores, dos quais os outros países, que já dependiam da produção chinesa, têm uma necessidade cruel. O senhor também mostrou que, levando sua ajuda técnica, a China procura convencer seus parceiros de seus exemplo e, assim, fazer esquecer seus erros e responsabilidades na gestão inicial da crise. Quais devem ser as consequência para a China em razão de seu comportamento no começo da crise e quais as medidas que a comunidade internacional pode tomar para evitar que isso ocorra de novo?
Há dois aspectos importantes. O primeiro aspecto nos leva a interrogações legítimas na China e no exterior sobre a gestão inicial da epidemia e, notadamente, sobre a transparência das autoridades chinesas nas primeiras semanas da epidemia. É como reação a essas questões que a China procura impor a própria narrativa sobre os eventos minimizando suas responsabilidades, colocando toda a culpa nas autoridades locais e, fazendo esquecer a censura, edulcorar sua imagem no exterior. Não há nada de surpreendente nisso. Mas alguns diplomatas chineses querem ir mais longe propagando rumores e desinformação, o que evidencia as inquietudes do regime. O segundo aspecto importante tem relação com a cooperação internacional em matéria de saúde pública e de luta contra as epidemias. Além da tensões políticas, é indispensável ir ainda mais longe naquilo que é feito no campo dos alertas epidemiológicos e das respostas coordenadas. Vê-se, mesmo na Europa, que nos faltou inicialmente solidariedade e cooperação. Isso passa pela tomada de consciência dos dirigentes dos riscos inerentes às epidemias. Essa pandemia certamente contribuiu para isso, para a adoção de medidas ainda mais fortes em termos de cooperação. Na Europa, isso pode passar por um papel aumentado da União Europeia em matéria de cooperação sanitária com, por exemplo, a criação de um centro de gestão de crise dedicado à construção de estoques estratégicos.