O presidente Jair Bolsonaro e o seu colega Alberto Fernández fizeram sua primeira reunião nesta semana em uma relação marcada desde o início por troca de críticas dos dois lados. Na avaliação de Marcos Fávaro, doutor em integração da América Latina pela USP e professor de relações internacionais da Universidade Paulista, o encontro é positivo ao sinalizar um gesto de reaproximação e indica que os dois países querem deixar de lado as diferença para valorizar a relação histórica.
"Os argentinos nos observam com cuidado, dão muita importância para as relações com o Brasil e tiveram a sabedoria de ver que governos passam e os Estados ficam", avalia Fávaro.
Ainda durante a campanha presidencial na Argentina em 2019, Fernández chamou Bolsonaro de “racista, misógino e violento”. O ataque foi um revide após o presidente dizer que “o Rio Grande do Sul pode virar um Estado como Roraima”, se a esquerda triunfasse nas eleições vizinhas.
À época ainda candidato, Fernández garantiu que a relação com o principal parceiro econômico não seria afetada. “Bolsonaro é uma conjuntura na vida do Brasil, como Macri é uma conjuntura na vida da Argentina”, afirmou. A confirmação da vitória do kirchnerista na Argentina piorou a situação. O brasileiro afirmou que não o cumprimentaria pela vitória, após Fernández aparecer em foto fazendo o gesto de Lula livre.
Durante os meses seguintes, sinais de um possível esfriamento apareceram. O primeiro encontro foi marcado para março deste ano, na posse do presidente uruguaio Lacalle Pou, mas acabou cancelado pela ausência de Fernández na cerimônia.
O Estadão mostrou no domingo que a pandemia e a consequente desaceleração econômica no país, que causou a maior saída de empresas multinacionais da Argentina desde a crise de 2002, fizeram o presidente argentino moderar seu discurso e começar a se afastar da cartilha de Cristina Kirchner, para tentar salvar a economia.
Qual o significado desse primeiro encontro virtual entre Jair Bolsonaro e Alberto Fernández?
É positivo. É muito difícil que Brasil e Argentina se distanciem, dada a evolução dos acontecimentos em tempos recentes e nos últimos 30 anos. É fundamental retomar e valorizar nossas conquistas com a Argentina por vários motivos. Existem muitos motivos econômicos para isso. Os números das indústrias dos dois países caíram nos últimos anos, e manter a escala dos mercados em um processo de integração é fundamental. A cooperação científica também, como no caso da crise sanitária que atravessamos. São duas sociedades que, de maneiras diferentes têm muita força, muita energia, e seria muito interessante continuar somando para as duas sociedades prosperem juntas. Vejo que agora as relações Brasil-Argentina não vão se aprofundar, mas vão retomar o seu modus operandi.
Como viu a relação Brasil-Argentina nos últimos anos?
Desde a era Temer (2016-2018) até a era Bolsonaro, houve um distanciamento. No documento Uma Ponte Para O Futuro, plano de governo de Temer, há uma certa indiferença às relações de Brasil-Argentina. E isso se aprofunda com Bolsonaro pela lamentável frase do Paulo Guedes de que o Mercosul não era prioridade. O Brasil tem que gostar do Mercosul e, para isso, a Argentina é fundamental. O Mercosul é um das poucas plataformas em que o Brasil pode vender produtos industrializados, que não são a maioria na nossa pauta de exportação. O comportamento de Bolsonaro ao longo dos últimos meses também não foi bom.
O que motivou o lado argentino a fazer esse gesto de aproximação?
Os argentinos foram sábios porque a situação poderia piorar. Eles nos observam com cuidado, dão muita importância para as relações com o Brasil e tiveram a sabedoria de ver que governos passam e os Estados ficam. E, claro, tem também a ver com a economia. O sentimento antibrasileiro é residual na Argentina. Pela nossa importância, pelo nosso tamanho, pela nossa projeção mundial, não é vantagem se afastar do Brasil ou gerar atrito, e as últimas décadas mostraram esse caminho para a Argentina. Quando o Mercosul foi fundado, falou-se que, para o Brasil, era bom negócio mas, para a Argentina, era um excelente negócio. Há essa consciência consolidada.
Historicamente, qual a importância para ambos os países dessa relação próxima?
O Mercosul é o principal exemplo. A história começa com a Guerra das Malvinas, quando começa a se encerrar um paradigma de conflito de Brasil e Argentina de longa duração. O Mercosul começou com um acordo bilateral entre Brasil e Argentina. Para a Argentina foi muito bem vindo, por que tirou ela da situação de isolamento. É um marco da nossa história e muda nosso registro das relações exteriores com aquele país.
Temos parcerias importantes no campo militar, desenvolvemos equipamentos juntos, a Marinha da Argentina faz manutenção de seus equipamentos em nossos estaleiros. As últimas décadas mostram que há vários pontos em que a cooperação é possível. Mas o principal acontecimento que os países devem respeitar, cultuar e deve ser mais debatido pela sociedade civil são as origens e a importância do Mercosul para a integração regional e inserção comercial.