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Egípcios estudam transição brasileira

Em SP, delegação do presidente Morsi reuniu-se com integrantes da Comissão da Verdade e ONGs para entender fim da ditadura

Por Roberto Simon
Atualização:

Planos ambiciosos de cooperação econômica, além de declarações sobre a crise síria e a questão palestina, marcaram a passagem pelo Brasil do presidente do Egito, Mohamed Morsi, na semana passada. A visita, porém, teve também uma "agenda paralela". Discretamente, o primeiro governo do Cairo a chegar ao poder pela via democrática veio estudar como foi a transição brasileira ao final da ditadura militar.A pedido do governo Morsi, integrantes da Comissão da Verdade encontraram-se com autoridades da delegação do presidente, em São Paulo, para discutir formas de levantar os crimes do passado. Houve também reuniões com ONGs que trabalham com a chamada "justiça transicional", área do direito que estuda mecanismos de superação de períodos marcados por violações. Os encontros foram agendados diretamente pela embaixada do Egito e o Itamaraty diz que nem sequer participou da escolha dos interlocutores brasileiros. Quem coordenou as reuniões foi a mulher mais importante do novo governo egípcio, Pakinam El Sharkawy, professora universitária ligada à Irmandade Muçulmana que ocupa o cargo de assistente para Assuntos Políticos de Morsi.Nas reuniões, ela se queixou que a Justiça do Egito é dominada por forças leais a Hosni Mubarak e, dessa forma, acabará por inocentar todos os quadros da ditadura que forem ao banco dos réus. "Não confiamos nos juízes", confidenciou.Ao mesmo tempo, segundo Pakinam, a juventude que lotou a Praça Tahrir em 2010 quer "dar o troco" nos integrantes do antigo regime e o governo Morsi, sob crescente oposição de grupos laicos e das Forças Armadas, está perdendo capital político. O principal objetivo da assessora do presidente egípcio, porém, era escutar como o Brasil conseguiu erigir um sistema democrático após os anos de chumbo. "Achamos boa a iniciativa, mas enfatizamos que o caso brasileiro não é um modelo de justiça transicional, pois aqui houve uma transição sem justiça", disse Juana Kweitel, da ONG Conectas, uma das organizações convidadas pelo governo egípcio para a "conversa".Ao escutar de interlocutores brasileiros que há documentos no País que comprovam casos de prisão arbitrária e tortura, a assessora de Morsi disse que a realidade dos arquivos do Egito é totalmente diferente. Segundo ela, praticamente inexistem provas materiais das violações cometidas, algo que dificultará reparações futuras.Uma fonte brasileira que conversou com a egípcia disse que ela "parecia mais interessada em museus, monumentos e no relato histórico" do que em realmente processar os integrantes do regime Mubarak acusados de graves violações.Apesar da distância geográfica, política, econômica e cultural, o Egito de hoje enfrenta algumas das mesmas questões colocadas ao Brasil do fim da ditadura: a necessidade ou não de uma nova Constituição, o que fazer com integrantes do velho regime acusados de violações, o papel da religião e a laicidade do Estado e o modelo econômico a ser seguido. Ativistas egípcios ouvidos pelo Estado dizem ver elementos da experiência brasileira que podem servir de exemplo e outros que devem ser evitados, sobretudo em relação à impunidade de acusados de tortura e outros crimes."O caso brasileiro e, de modo mais geral, o latino-americano mostram que é impossível pensar que a democracia chegará no Egito de um dia para o outro", afirma a ativista Heba Morayef, da Human Rights Watch, eleita este ano pela revista Time uma das 100 pessoas mais influentes do mundo. "Estamos olhando para a América Latina, principalmente quanto à justiça transicional e a reforma dos serviços de segurança do Estado. O problema é que o clima no Egito piorou e muitos duvidam que haverá esse tipo de mudança por aqui."Hossam Bahgat, do Egyptian Initiative for Personal Rights, afirma que Morsi tenta propagandear uma nova diplomacia mais distante de Washington - da qual a viagem ao Brasil seria parte - para compensar os "enormes fracassos domésticos". Bahgat questiona os "resultados ambíguos" do Brasil na reparação de crimes cometidos pela ditadura, mas diz que há bons exemplos em áreas como luta contra a desigualdade.

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