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Em caso dramático, francesa julgada por matar marido abusivo deixa tribunal em liberdade

Decisão do tribunal pode abrir um poderoso precedente na França, onde a violência doméstica é um problema crônico

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Por Redação
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CHALON-SUR-SAÔNE, FRANÇA - Valérie Bacot tinha apenas 12 anos quando seu padrasto começou a estuprá-la. Depois de uma temporada na prisão por abusar dela, ele voltou para a casa da família e retomou os estupros, como contou ela. Os dois acabaram se estabelecendo pelo que Bacot relatou terem sido 18 anos de espancamentos repetidos, agressões sexuais e prostituição forçada.

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“No começo eram tapas, depois chutes, socos e ele me estrangulava”, disse Bacot, uma mulher frágil de 40 anos, a um tribunal francês em depoimento emocionado esta semana, contando como estava com medo de morrer todos os dias.

Até o dia em que ela matou Daniel Polette, o padrasto que se tornou seu marido.

Na sexta-feira, um tribunal condenou Bacot a uma pena de 4 anos de prisão, com 3 anos suspensos, o que significa que ela não enfrentaria mais prisão porque já cumpriu 1 ano de prisão. “Isso significa, senhora, que você deixará este tribunal em liberdade”, disse um juiz a Bacot, enquanto sua família sentada atrás dela desatou a chorar e aplaudir a decisão.

Amparada e aplaudida, Valérie Bacot (C) deixa tribunal em Chalon-sur-Saone, na França; violência doméstica é problema crônico na França Foto: Jeff Pachoud/AFP

A decisão do tribunal - que considerou o assassinato premeditado, mas também reconheceu que o julgamento de Bacot foi alterado pelo abuso que ela sofreu - pode abrir um poderoso precedente na França, onde a violência doméstica é um problema crônico.

O caso de Bacot chamou a atenção nacional na França e serviu como ponto de encontro para os defensores das vítimas de violência doméstica.

A decisão de sexta-feira ocorre enquanto a França experimenta um momento #MeToo que chegou tarde ao país, quando as alegações de abuso sexual contra figuras poderosas forçaram um ajuste de contas e levaram o governo a revisar a legislação sobre sexo entre adultos e menores.

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Por cinco dias, a sala do tribunal com painéis de madeira em Chalon-sur-Saône, uma cidade tranquila na região central da Borgonha da França, foi palco de relatos assustadores detalhando as muitas falhas que levaram à tragédia. 

O tribunal ouviu sobre o controle psicológico que Polette exercia sobre sua enteada, depois mulher; a inação das autoridades; e o silêncio dos parentes - todos levantando uma questão incômoda: quem foi a verdadeira vítima neste caso? Polette, o abusador assassinado, ou Bacot, a assassina abusada?

“Foi uma grande bagunça”, disse ao tribunal Lucas Granet, amigo de escola dos quatro filhos de Bacot, com idade entre 14 e 22 anos, segundo relatos da mídia francesa. “Nessa história, nada está certo do início ao fim.”

Bacot contou sua história em um livro publicado no mês passado, Tout le Monde Savait (Todos Sabiam, na tradução livre), que detalhou a infelicidade implacável de sua vida. 

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Quando ela tinha 12 anos, Polette tornou-se parceiro de sua mãe divorciada e logo coagiu a filha a fazer sexo. Ele foi preso por agressão sexual contra Bacot, mas foi autorizado a voltar para a casa da família depois de três anos na prisão e retomou o abuso, disse ela, enquanto sua mãe fazia vista grossa.

“Ninguém parecia achar bizarro que Daniel voltasse para morar conosco como se nada tivesse acontecido”, Bacot escreveu em seu livro.

Aos 17 anos, Bacot teve um filho com Polette, que a instalou em um apartamento, onde passaram a viver. Seguiram-se mais três filhos, todos vivendo sob as garras de um pai alcoólatra e compulsivo que instalava medo na família e frequentemente ameaçava matar Bacot, disse ela. Os dois se casaram quando Bacot tinha 27 anos e Polette, 53.

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Depois de alguns anos, Bacot disse que Polette a forçou à prostituição. Por 11 anos, ele a fez fazer sexo com clientes no banco de trás de seu carro, dando instruções por meio de um fone de ouvido, disse ela. 

Os filhos de Bacot disseram ao tribunal que souberam sobre isso quando encontraram cartões de visita que seu pai havia feito, com as palavras "acompanhante" escritas neles. 

Bacot disse que sabia que tinha de agir depois que Polette perguntou à filha sobre sua sexualidade, aumentando o temor de que ele logo se voltaria contra ela. 

Em 13 de março de 2016, depois de ter sido estuprada por um cliente, Bacot contou que pegou uma pistola que seu marido havia escondido em seu carro e atirou em sua nuca.

As principais questões que motivaram as deliberações do tribunal nesta semana foram se Bacot era a verdadeira vítima nesse caso e se o crime dela era legítima defesa.

Seus advogados e especialistas disseram que o controle psicológico foi tal que seu estado de espírito foi alterado e que o assassinato era a única saída. “Ela não podia recorrer à lei”, disse Denis Prieur, um psiquiatra, ao tribunal. “Não havia outra possibilidade a não ser fazê-lo desaparecer.”

Nathalie Tomasini, uma das advogadas, disse que não havia nenhum texto legal na França defendendo a mulher agredida acusada de homicídio, como há no Canadá, onde o argumento da legítima defesa em tais casos pode ser usado.

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Em contraste, o promotor público, parado a poucos metros de Bacot, que manteve a cabeça baixa, disse na sexta-feira que o ato foi premeditado e não pode ser desculpado. Inconsistências nos depoimentos de Bacot e Granet também levantaram suspeitas de que o assassinato havia sido planejado com antecedência.

Mas o promotor também levou em consideração o sofrimento duradouro de Bacot, solicitando apenas uma pena de prisão de cinco anos, dos quais quatro anos seriam suspensos. Bacot, dominada pela emoção porque esperava um pedido mais severo, desmaiou por alguns minutos.

O júri do tribunal decidiu reduzir ainda mais a sentença solicitada, argumentando que o controle psicológico de Polette sobre sua mulher alterou seu julgamento. O júri também mostrou consideração pelos abusos que Bacot sofreu por muito tempo.

O caso de Bacot se assemelha muito ao de Jacqueline Sauvage, que foi condenada na França a 10 anos de prisão em 2014 por matar seu marido abusivo, levando a debates igualmente acirrados sobre autodefesa em casos de abuso. Sauvage acabou recebendo um perdão presidencial em 2016, depois que ela se tornou um símbolo da luta contra a violência doméstica.

A violência doméstica se tornou um problema crescente na França, onde 146 mulheres foram mortas por seus atuais ou ex-parceiros em 2019, de acordo com dados do governo, um aumento de 21% em relação a 2018. O governo introduziu novas medidas para combater o problema, incluindo mais educação e mais assistentes sociais nas delegacias, mas muitos ativistas dizem que os esforços não vão suficientemente longe e são subfinanciados.

Antes do veredito de sexta-feira, mais de 700 mil pessoas haviam assinado uma petição exigindo que Bacot fosse inocentada de qualquer acusação.

Os filhos de Bacot disseram ao tribunal que foram duas vezes à polícia no início da década de 2010 para denunciar o pai, mas que nenhuma ação foi tomada. A polícia disse não ter encontrado nenhum vestígio dessas acusações.

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Na quarta-feira, os advogados de Bacot disseram que entraram com uma ação judicial contra o Estado francês por não investigar o caso.

Dirigindo-se ao júri, Bacot disse que esperava que o julgamento a ajudasse a "superar tudo, ser como todos vocês". “Esse teste é um grande passo para mim, para conseguir deixar as coisas para trás e seguir em frente”, disse ela.

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