‘Em Portugal, nunca tive um juiz imparcial’, diz José Sócrates; leia a entrevista 

Ex-premiê português se defende das acusações de corrupção e compara seu processo com o caso do ex-presidente Lula

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Por Rodrigo Turrer
Atualização:

Principal acusado na maior ação de combate à corrupção em Portugal, a Operação Marquês, conhecida como Lava Jato portuguesa, o ex-primeiro-ministro José Sócrates (2005-2011) foi inocentado na maioria delas, mas ainda vai responder por seis crimes: três referentes a lavagem de dinheiro – ligados a um imóvel em Paris –, e três por falsificação de documento.

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O ex-primeiro-ministro lançou nesta quinta-feira, 15, um livro sobre o período em que ficou preso e o processo que enfrentou. No livro Só agora começou, que será lançado no Brasil pela editora Contracorrente, Sócrates insiste que foi alvo de uma vingança da direita e que um dos principais objetivos da Operação Marquês foi impedir uma candidatura sua à Presidência da República.

 Detido no aeroporto de Lisboa quando regressava de Paris, em novembro de 2014, Sócrates ficou preso preventivamente por 11 meses, mesmo sem uma acusação formal, que só veio em outubro de 2017. Ele criticou a Justiça portuguesa e a brasileira por uso político de seus poderes e diz ver semelhanças entre seu caso e o do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A seguir, trechos da entrevista concedida por Sócrates ao Estadão

O sr. afirma que houve abuso em todos os processos da Operação Marquês. Por quê? 

Eu fui detido para interrogatório. No Brasil, vocês chamam de condução coercitiva. Fui detido ao chegar ao país, no aeroporto. Com as televisões avisadas. Fiquei preso durante 11 meses sem qualquer apresentação de denúncia, sem qualquer acusação. Onze meses presos e durante três anos nenhuma acusação foi apresentada. A acusação só veio em 2017, três anos depois de ter sido preso, período em que eu fui difamado em todos os jornais. Em 2014, antes de eu ser preso, o processo foi viciado pela escolha do juiz que acompanharia o processo.

O juiz tem de ser escolhido por sorteio, mas no meu caso isso não foi feito. O juiz foi escolhido pelo próprio Ministério Público. Houve um conluio entre MP e Justiça para escolher um juiz, que mais tarde me prendeu e dava sempre razão à acusação. Um juiz que permitiu que eu tivesse um ano e meio sem ter acesso aos autos e ficasse três anos à espera de uma acusação que nunca chegava por causa dos sucessivos adiamentos do MP. Faz lembrar o que se passou no Brasil. A motivação deste processo nunca foi judicial, mas política.

Sócrates na chegada ao tribunal em Lisboa: seis acusações ainda estão pendentes Foto: Pedro Nunes/Reuters

E qual seria a razão da suposta perseguição do MP e da Justiça?

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Está claro que houve motivação política. Tanto é que o juiz da fase de instrução, diferentemente do juiz da primeira fase do processo, que foi escolhido por sorteio, considerou que todas as acusações não tinham fundamento. O juiz, aliás, considerou algumas delas fantasiosas e outras especulativas, segundo palavras do próprio juiz. A intenção era me tirar do espaço público, garantir que eu não me candidatasse à presidência em 2015. Eu não fazia ideia disso, mas a direita achava que o Partido Socialista me escolheria para ser candidato. Eles procuraram me tirar do jogo. A mesma coisa no Brasil, com a prisão do Lula. 

Em que sentido esse paralelo?

Aqui, o MP escolheu um árbitro. Eu nunca tive um juiz imparcial. Não há julgamentos justos sem um juiz imparcial. A escolha de um juiz que faça tudo o que a acusação deseja, que persiga o acusado e permita abusos da promotoria. Foi o que aconteceu no Brasil. Porque um aspecto fundamental da justiça democrática a que todos os países estão obrigados é o princípio do estado democrático de direito, em que o juiz para um caso não pode ser escolhido pelo Estado que acusa. Deve estar previsto na lei esse sorteio. Foi isso que não fizeram, aqui no meu caso.

E no Brasil, com a condução do processo pelo juiz de Curitiba (Sérgio Moro). São casos semelhantes na utilização da Justiça para perseguir um adversário político. Isso acontece em todo o mundo: o uso do combate à corrupção como um instrumento para perseguir o adversário. O próprio juiz de Curitiba, que não passa de um falso juiz, sempre se comportou como ativista político. Isso é muito importante, porque no mundo todo é preciso que os sistemas judiciais se preservem de uma manipulação que possa ter consequências políticas. A grande tarefa da esquerda é restaurar o prestígio do sistema judicial, não permitir mais que ele seja utilizado para fins políticos.

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O sr. ainda será julgado por seis crimes. Essas acusações também são infundadas?

Bom, o juiz de agora também decidiu fazer uma coisa que eu não posso aceitar e vou contestar: eu passei sete anos me defendendo de duas acusações de ter sido corrupto e de ter corrompido em atos do governo, como por exemplo na construção dos trens de alta velocidade. Foram acusações que pretendiam criminalizar as políticas. Também me acusavam de ter uma fortuna no banco em nome de um amigo que seria meu testa de ferro.

Tive de provar que o dinheiro não me pertencia. Agora, depois de o próprio juiz dizer que havia fantasias no processo, ele diz que pode haver indícios de recebimento indevido de vantagem, que teria acontecido só depois que eu saí do governo. Mas esta é uma acusação nova, e com a qual eu nunca fui confrontado. O juiz quer agora imputar-me um crime que o MP não me imputou. É como a construção diabólica da Inquisição. Tu estás possuído pelo demônio e, por isso, estás a dizer estas coisas. Estás possuído pelo demônio e, por isso, estás a negar que estás possuído pelo demônio, justamente porque o demônio está em ti.

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Um dos casos que mais chama a atenção dos brasileiros, em relação às acusações contra o sr., é sobre a negociação entre a Portugal Telecom e a Oi. Qual foi sua participação?

Essa foi uma das acusações que o juiz considerou absolutamente sem fundamento. Eu era acusado de ter recebido vantagem na fusão da Portugal Telecom com a Oi. O que eu fiz enquanto primeiro-ministro? Os acionistas da Portugal Telecom queriam vender a Vivo aos espanhóis e fizeram um acordo com eles sem dizer nada ao governo. Achei que o governo deveria utilizar sua participação qualificada para vetar isso, porque era contrário aos interesses de Portugal. Fiz isso contra os interesses do Banco Espírito Santo, a quem eu fui acusado de ajudar.

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Sempre achei que a Portugal Telecom tinha um grande valor por estar em vários continentes. Não deveríamos prescindir do mercado brasileiro. Mais tarde, os acionistas da Portugal Telecom propuseram uma troca de participações com a Oi. Por quê? Para que o governo levantasse o veto, para impedir que a empresa saísse do Brasil. Quando saí do governo, não havia nenhuma fusão encaminhada. Uma empresa entrou no capital da outra. Nunca tive conversa com Lula sobre isso, nem conheci o ministro das telecomunicações do Brasil na ocasião. Mas isso tudo foi completamente esclarecido, e o juiz do caso desconsiderou esta acusação.

O sr. se sentiu abandonado pelo Partido Socialista?

Eu deixei o Partido Socialista em 2018 porque já não aguentava o silêncio perante todos os abusos que cometeram contra mim. Eu fui preso diante das câmeras quando entrava no país. Não estava a sair. Eu fui preso com a notificação prévia às televisões. Eu fui preso durante 11 meses sem nenhuma acusação. Eu fui alvo de uma campanha de difamação de cinco anos com fontes do próprio Ministério Público, e nunca o Partido Socialista teve uma palavra para condenar os abusos.

Mas eu saí porque, em 2018, o partido fez uma declaração acusando um ex-ministro, um ex-ministro meu, e fez uma coisa que considerei inaceitável: uma condenação sem julgamento. Isso eu não admito a ninguém. Acho que isso é um dos atos mais repugnantes e que degradam a vida pública. Nesse momento decidi sair do Partido Socialista e saí com uma ação pública dizendo que não aceitava aquilo, porque o próprio partido tem que compreender sua a história.

O Partido Socialista é um grande partido popular, representante da esquerda democrática, e que nasceu na luta pela conquista da democracia e contra uma ditadura. O Partido Socialista é o partido da liberdade, da garantia dos direitos, que não traz em nenhum momento com abusos do Estado contra ninguém. O partido errou ao fazer condenações sem julgamento. Não diretamente a mim, mas a essas pessoas que estiveram no governo comigo. Por isso sai.

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O sr. pretende voltar à política?

Eu durante quatro anos fui insultado em todas as televisões, sem ter havido sequer uma denúncia formal contra mim. Eu nunca fui a julgamento nesta fase em que estou a falar. Essa foi a fase pré julgamento. O que o juiz decidiu agora era o que havia de concreto para ir a julgamento. A vossa Lei da Ficha Limpa é uma lei que trata de políticos com condenações. Só que eu nunca fui condenado. Nunca fui sequer a julgamento. Eu estou numa fase pré-julgamento e foi isso que o juiz disse: estas acusações, estas denúncias, não têm fundamento nem mérito. Eu nunca fui condenado.  Sobre se voltarei à vida pública, como político, não quero compartilhar isto, porque é uma reflexão que preciso ter comigo mesmo. Mas quero que fique claro: uso todos os meus direitos sociais e direitos individuais e quero estes direitos intactos. O que eu fiz ao longo deste tempo foi sempre ser fiel àquilo que são meus próprios princípios. Eu nunca quis utilizar a política contra a Justiça. Acho que as questões judiciais se resolvem na Justiça e são sempre questões individuais. Agora, quanto ao meu direito de regresso ou não à política, será uma reflexão que eu farei num diálogo comigo.

Como é sua relação com Lula e como enxerga os processos que ele enfrenta no Brasil?

Conheci Lula quando fui eleito primeiro-ministro. Ele já era presidente, em 2005. Minha amizade com ele tem a ver com duas coisas. Primeiro, uma enorme admiração que tenho pela obra que ele realizou, que tem a ver com o fato de ele ter transformado o Brasil em um ator político global. O segundo é um fato que foi benéfico para a sociedade brasileira: ele elevou a qualidade de vida das pessoas mais pobres. 

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