Encruzilhada na Síria

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Por Adriana Carranca
Atualização:

Deste lado do mundo, o desenvolvimento do conflito sírio, que provocou o maior êxodo e a mais aguda crise humana desde a 2.ª Guerra, é visto mais ou menos assim: a milícia curda Unidades de Proteção do Povo (YPG, na sigla em curdo) obteve os maiores avanços contra o Estado Islâmico com apoio da Força Aérea dos EUA. Os ataques americanos são lançados de uma base militar na Turquia, que aproveitou o envolvimento na guerra para atacar a guerrilha curda do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), considerada terrorista por Ancara e Washington, mas cuja experiência é responsável pelas vitórias do YPG. Os curdos, por sua vez, mantêm aliança estratégica com Bashar Assad, inimigo dos EUA e aliado da Rússia e do Irã, considerados ameaça às monarquias sunitas do Golfo, como Arábia Saudita e Catar, que financiam grupos como a Frente al-Nusra, ligada à Al-Qaeda, e o EI, embora se digam aliados de Washington. Nessa guerra, o inimigo do seu amigo é um aliado conveniente; o inimigo de seu inimigo não é necessariamente um amigo. Alianças forjadas por interesses próprios fazem da solução algo distante, uma miragem num deserto de boas intenções. Cada um desses atores tem uma agenda particular e ninguém está preocupado com os sírios. As milícias curdas, nova aposta dos EUA contra o EI, lutam por um Estado independente que una os territórios onde detêm maioria na Turquia, Síria, Irã e Iraque. Brutalmente oprimidos pelo regime de Saddam Hussein, no Iraque, os curdos foram importantes parceiros da coalizão liderada pelos EUA que invadiu o país, em 2003. Durante a década seguinte, eles estabeleceram um Estado autônomo no norte do Iraque. Fizeram o mesmo depois na Síria. A ascensão dos curdos, no entanto, é vista como ameaça pela Turquia, há 30 anos em conflito com o PKK, cujo partido político obteve recorde de 12% dos votos nas eleições parlamentares turcas de junho. Com suas fronteiras com a Síria ameaçadas pelo avanço do EI, o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, concordou em colaborar com os EUA na Síria, mas voltou a bombardear bases do PKK, o que pode enfraquecer a defesa contra os jihadistas. Esses grupos extremistas, como o EI, não são apenas uma horda de lunáticos despreparados como se pensa. Eles contam com o apoio da elite militar sunita do Iraque, que perdeu o poder com a invasão americana e a queda de Saddam. Os sunitas voltaram-se para a Síria após sua expulsão por grupos de extermínio de Bagdá, que luta para garantir a supremacia xiita, no poder desde a deposição do ditador iraquiano. O rearranjo religioso e étnico das linhas de combate levou a guerra na Síria a outro patamar e embaralhou os lados do conflito. Os xiitas de Bagdá, levados ao poder pelas mãos dos EUA, deram apoio a Assad, que embora estivesse à frente de uma ditadura laica, é da minoria alauita, ramo do xiismo, enquanto seus opositores são sunitas. O Irã xiita e as monarquias sunitas do Golfo assumiram suas posições na guerra e têm garantido suprimentos militares ilimitados a seus aliados. A coalizão liderada pelos EUA apoiou combatentes contra Assad, mas a ascensão de extremistas sunitas tornou a aliança perigosa. Agora, líderes ocidentais já falam em retomar diálogo com Assad, diante da ameaça do EI e do clamor mundial. A Rússia, por sua vez, moveu tropas, tanques e caças para a margem síria do Mediterrâneo em apoio a Assad, mas não apenas isso. Vladimir Putin acredita que aumentar sua influência na guerra pode lhe garantir concessões junto ao Ocidente. Ele se reunirá com o presidente Barack Obama durante a Assembleia-Geral da ONU para barganhar o apoio contra extremistas islâmicos na Síria em troca de um meio termo sobre Ucrânia e o fim de sanções à Rússia. Como no Afeganistão, nos anos 80, a Síria se tornou um campo de batalha por influência global.

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