Entenda as negociações de paz com as Farc na Colômbia

Novo diálogo tem apoio da sociedade civil e da comunidade internacional.

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Por Leandra Felipe
Atualização:

A negociação de paz entre as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e o governo colombiano conta com apoio da sociedade civil do país que, apesar de cética devido a fracassos anteriores, aprova os diálogos. A comunidade internacional também é a favor do processo de paz. A ONU e União Europeia já haviam se manifestado favoravelmente na semana passada e, nesta terça-feira, alguns países fizeram o mesmo. O presidente dos EUA, Barack Obama, respaldou o governo colombiano sobre o processo, assim como a presidente Dilma Rousseff que, em nota, disse que a notícia é "motivo de comemoração na América do Sul e no mundo". O processo será conduzido pela primeira vez fora do território colombiano e com a presença ativa, até o momento, de quatro países: Cuba, Venezuela, Noruega e Chile. Se der certo, marcará o fim do conflito protagonizado pelas Farc, o mais antigo grupo insurgente da América Latina, em atividade desde 1964, e com forte influência militar da antiga União Soviética. Para se manter à margem da lei, a guerrilha se aliou ao narcotráfico colombiano e hoje controla parte da produção e tráfico da cocaína. Além disso, acumula crimes cometidos no âmbito do conflito, como recrutamento forçado de crianças, ataques a civis, com explosões e minas terrestres e, até fevereiro, sequestros para arrecadar dinheiro. Em meio à "torcida" para que a negociação ponha fim ao conflito, algumas dúvidas sobre o processo surgem entre colombianos e na comunidade internacional. A BBC Brasil procurou especialistas para explicar um pouco melhor o processo iniciado há seis meses em Cuba. Por que outras negociações de paz não deram certo no passado? As Farc e o governo colombiano fizeram outras duas tentativas amplas de negociar a paz. Nos anos 80, o governo do presidente Belisario Betancur conduziu negociações com as Farc e a extinta guerrilha M-19 e, após um cessar fogo, as Farc ajudaram a formar um partido político - a União Patriótica (UP). Há diversas versões sobre o motivo do fracasso desse processo. Segundo integrantes do governo o problema foi que as Farc não abandonaram as armas, mas usaram o ativismo político para se fortalecer militarmente em uma estratégia que o líder guerrilheiro Jacobo Arenas definiu como "combinação de todas as formas de luta". A guerrilha, por sua vez, culpa a incapacidade do governo garantir a segurança de guerrilheiros que abandonaram as armas para seguir a via política e seus aliados - o que permitiu que a UP fosse dizimada por paramilitares e narcotraficantes. Em 1985, o diálogo de paz foi enterrado com a tomada do Palácio da Justiça pelo M-19. Em 1998, com as Farc fortalecidas, o governo de Andrés Pastrana consentiu em criar uma área desmilitarizada do tamanho da Suíça para negociar a Paz em San Vicente del Caguán. A guerrilha mais uma vez usou o processo para se fortalecer militarmente, ampliar o recrutamento entre camponeses e ganhar apoio. Fez contatos com representantes de governos estrangeiros e convidou jornalistas para visitar seus acampamentos. Após a experiência do Caguán, que terminou em 2002, Álvaro Uribe foi eleito prometendo uma estratégia de mão firme contra as Farc. Quais as diferenças entre este processo de paz e tentativas anteriores? À primeira vista, há muitas diferenças. Primeiro, nessa negociação há um senso de urgência sobre o fim do conflito. Ambas as partes não estariam conversando para ver se continuam ou não o combate e em que condições. "A premissa agora é o término do conflito", comentou Ariel Ávila, da Corporação Nuevo Arco Íris, ONG especializada no conflito armado colombiano. Além disso, agora as Farc estão acuadas militarmente. Com o fracasso da Zona Desmilitarizada, o Plano Colômbia (cooperação bilateral entre Colômbia e Estados Unidos) - que se justificava para combater o narcotráfico - combinado com a estratégia militar colocada em prática por Uribe acabaram diminuindo substancialmente o poder de fogo da guerrilha. Até 2002, a cúpula das Farc estava praticamente intacta. Desde então, foram mortos líderes importantes, como Raúl Reyes, o "chanceler" das Farc, o líder militar Mono Jojoy e Alfonso Cano, chefe da guerrilha após a morte por causas naturais do líder histórico Manuel Marulanda, em 2008. Durante as negociações no Caguán, as Farc chegaram a ter 20 mil homens. Agora, estima-se que tenham de 8 a 10 mil. As Farc também perderam apoio dentro e fora da Colômbia com a exposição do drama dos políticos e militares sequestrados pelos guerrilheiros e mantidos por até 12 anos em cativeiro. Se o governo estava avançando na estratégia militar, por que ele aceitou dialogar agora? A Colômbia já gasta cerca de 6% do PIB em Defesa e hoje conta com o apoio financeiro e militar dos EUA. Sem o conflito, mais recursos poderiam ser investidos em desenvolvimento econômico. Além disso, apesar de as Farc estarem enfraquecidas, seu poder está longe de ser irrelevante. Mesmo com todo esse esforço financeiro e militar, a guerrilha continua bastante atuante em diversas áreas do país, como nos departamentos de Cauca, Nariño, Meta e La Guajira. "Pela geografia da Colômbia, é dificílimo empreender uma derrota militar contras as Farc. Não podemos nos esquecer das montanhas que servem de refúgio aos guerrilheiros", comenta a jornalista María Patrícia Duque, da revista Razón Pública. Outro ponto é o cansaço das populações das regiões de conflito. Quem vive nas chamadas "zonas vermelhas", onde os combates acontecem, vem pressionando as Farc e o governo para colocar um fim ao conflito armado. Para completar, faz pelo menos cinco anos que os EUA vêm reduzindo o orçamento do Plano Colômbia - o que indica que no futuro os colombianos podem ter de atuar sozinhos. Haverá um cessar fogo durante as reuniões? Essa é outra diferença desta negociação. Nas outras tentativas, a zona desmilitarizada ou o cessar fogo foram definidos antes de começarem os diálogos. O presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, enfatizou por várias vezes que esse era um dos pontos acordados para que as negociações começassem. "Enquanto nos sentamos para negociar, as operação militares não serão interrompidas", frisou. A ideia é não diminuir a pressão sobre a guerrilha. Na última segunda-feira, por exemplo, 10 guerrilheiros morreram em combate com o Exército. O que fazer com os ex-guerrilheiros e para reparar as vítimas? Ao se desmobilizarem, os guerrilheiros deverão ser reintegrados à sociedade. Está em discussão agora que tipo de benefícios judiciais (anistias, redução de pena) eles terão. O Marco Legal para a Paz, aprovado em junho deste ano, definiu que os desmobilizados que forem condenados por crimes de lesa humanidade ou de guerra não poderão ter participação política no país. A inserção política deve ser um dos temas mais difíceis da mesa de negociações. A Colômbia já tem um programa de desmobilização e reintegração coordenado pela presidência do país. Desde 2003, quando foi iniciado o processo de desmobilização dos paramilitares das Autodefesas da Colômbia (AUC), 56 mil pessoas já se desmobilizaram. Deste total, quase 23 mil são desmobilizações individuais de guerrilheiros das Farc, e o restante das AUC. Por outro lado, o direito das vítimas será um ponto colocado em discussão. "As vítimas têm todo direito à reparação. Isso deve ser prioridade e a sociedade civil deve pressionar para que o processo não seja falho", disse à BBC Brasil o cientista político Álvaro Villarraga, da Fundação Cultura e Democracia. A reparação de vítimas deve incluir indenizações em dinheiro, "comissões da verdade" para descobrir o destino de pelo menos 3 mil pessoas desaparecidas, inicialmente sequestradas pela guerrilha, pedidos de perdão e condenações judiciais. As 3,8 milhões de pessoas deslocadas pelos combates também terão de ser reparadas, terão o direito de regressar às suas casas na zona urbana ou voltar aos quase 2 milhões de hectares de terra que foram sacados de seus donos durante o conflito. A reparação e restituição de terras já começaram a ser feitas desde janeiro deste ano, seis meses depois que entrou em vigor a Lei de Vítimas e Restituição de Terras. Quais são os inimigos do processo? Analistas concordam que os maiores inimigos atualmente são os aliados do ex-presidente Álvaro Uribe, criadores de gado, as Bacrims (bandas criminais) e novos grupos paramilitares, formados a partir da dissolução das AUC. "Ainda que Uribe tenha iniciado o processo de aproximação com as Farc, para ele é inadmissível alguns termos desta negociação, como, por exemplo, a reinserção política", explica Álvaro Villarraga. O Brasil pode ajudar em algum momento? Para especialistas, ainda que não tenha participado nas negociações do pré-acordo, o Brasil pode ser muito importante nessa segunda fase de diálogo. Para a corporação Novo Arco Íris, o país pode apoiar em momentos de crise durante as reuniões, quando houver impasse sobre algum ponto. Além disso, o país poderá ajudar com "aprovação" em cada passo ou etapa atingida. "O efeito psicológico disso será muito positivo, para ambos os atores", comenta Ariel Ávila, da ONG Novo Arco Íris. Por último, o Brasil poderia ajudar em operações logísticas, com voos e helicópteros, já que em momentos delicados, como a libertação de reféns, prestou apoio por ser considerado de confiança por ambas as partes envolvidas. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. 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