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Entre o leão e o crocodilo

A disputa do momento, entre o 'soft power' do Google e o ''hard power'' do Estado chinês, mostra o quanto precisamos encontrar novas regras para a nossa aldeia global

Por Timothy Gartonash e The Guardian
Atualização:

A história da disputa entre Google e China está entre aquelas que definem a época na qual vivemos. Como um leão enfrentando um crocodilo, o "poder brando" (soft power, conceito cunhado por Joseph Nye) global da empresa americana se choca contra o "poder duro" (hard power) do Estado chinês. Essa disputa recebe a contribuição da maior revolução na tecnologia da informação desde que Johannes Gutenberg inventou a prensa de tipos móveis, no século 15. É também a maior mudança na estrutura global de poder desde a ascensão geopolítica do Ocidente, situada por alguns historiadores no século 15. Uma coisa é certa: não saberemos tão cedo quem será o vencedor. Como consequência da decisão do Google de abandonar a censura e transferir a versão chinesa de seu mecanismo de buscas para Hong Kong, os usuários que buscam informações na internet da China podem enfrentar algumas dificuldades no curto prazo. Apesar de ainda estarmos nos primeiros dias da mudança, o número de termos politicamente relevantes bloqueados pelos filtros da grande muralha eletrônica aumentou quando o site de Hong Kong é acessado a partir da China continental, se comparado à censura exercida pelo próprio Google no domínio google.cn durante os quatro anos de cooperação com Pequim. Se as autoridades chinesas desejassem levar a disputa adiante e bloqueassem totalmente o acesso ao site, os internautas chineses perderiam mais - mas talvez somente no curto prazo. Distorções. A imensa publicidade em torno desse debate deve ter alertado muitos dos mais de 400 milhões de internautas chineses para a maneira pela qual os resultados de suas buscas são distorcidos - característica mistura de censura direta por parte do Estado e autocensura da parte dos provedores de informação online que operam dentro dos limites da muralha eletrônica. Basta observar a comparação entre os resultados de buscas para termos como "Dalai Lama", "Falun Gong" e "Liu Xiaobo" (dissidente aprisionado) publicados na edição de quarta-feira do jornal The Guardian, que inclui aqueles produzidos pelo yahoo.cn, que pratica uma rigorosa autocensura. Nos sites censurados, o usuário simplesmente não tem como saber aquilo que não sabe. O que pode ser descoberto costuma ser falso e parcial. É muito importante que as pessoas percebam o quanto é distorcida a informação que chega até elas por um meio que aparenta ser livre. Rebecca MacKinnon, uma das principais autoras sobre a internet na China, expõe a questão nas seguintes palavras: "aqueles que nascem sem visão periférica acham que sua condição é normal até perceberem que, com a visão periférica, a vida é não apenas possível, mas muito melhor. Quanto mais essa história permanecer nas manchetes, maior será o número de pessoas que tomará consciência da própria falta de visão periférica e pensará em formas de eliminá-la. Há dois pressupostos otimistas no que ela propõe. O primeiro sugere que as pessoas não gostam de ver seus preconceitos políticos e nacionais confirmados pela mídia parcial. Chegam aos nossos ouvidos as queixas de uma minoria corajosa e expressiva de internautas chineses, mas o que dizer se o restante destes usuários gosta de poder contar com filtros patrióticos, puritanos e ideológicos para as informações recebidas? E se eles forem o equivalente chinês dos fãs da Fox News? Pois o que os fãs americanos da Fox News dizem é o seguinte: "Falta de visão periférica? Sim, por favor! Cobertura injusta e parcial? É assim que gostamos!" Parece que a imparcialidade, ao estilo da BBC, está perdendo espaço para uma multiplicidade de parcialidades na mídia de boa parte do mundo democrático. O contraste crucial em relação à China é, obviamente, o fato de os americanos poderem escolher. Eles podem mudar para a CNN com o apertar de um botão. A maioria dos chineses não pode fazer isto. O outro pressuposto otimista de Rebecca diz que, para os chineses, "é possível" escapar dessa falta de visão periférica e conquistar essa oportunidade de escolha. Com frequência, especialmente nos EUA, tal otimismo é justificado pela referência ao progresso na tecnologia. No entanto, não há nada de automático a respeito do efeito libertador das tecnologias da informação dentro de regimes autoritários. É verdade que blogueiros e dissidentes, de Teerã a Pequim, comemoram as oportunidades que essas tecnologias oferecem. Regimes autoritários da Rússia à China, porém, têm sido, até o momento, bastante eficazes no controle da internet - e até no uso que fizeram dela contra seus críticos. Oportunidades. Alguns anos atrás, o ativista chinês defensor dos direitos humanos Liu Xiaobo escreveu um texto comovente sobre as oportunidades que a internet lhe proporcionava. Hoje, Liu Xiaobo está na prisão. O segundo assalto foi vencido pelo poder antiquado do Estado territorial. Entretanto, isto tem um custo alto para o Estado e a próxima onda de tecnologias de comunicação e da informação, incluindo aquelas que burlam os bloqueios eletrônicos, aumentará ainda mais o custo de se manter o controle. Assim, temos uma verdadeira corrida armamentista digital. Nesse grande jogo do início do século 21, vemos três tipos principais de participantes: Estados, empresas e internautas. Os Estados autoritários não são os únicos a enfrentar problemas no livre fluxo das informações: os países democráticos também passam por isto. Empresas como Google, Yahoo e Microsoft têm grandes perguntas a responder a respeito da maneira com a qual selecionam, administram e vendem as vastas fontes de informação a sua disposição. Não deixo de imaginar qual seria a posição do Google em relação à questão chinesa se um de seus fundadores, Sergey Brin, não tivesse passado seus primeiros anos na União Soviética. E a Microsoft poderia ter uma posição moral melhor se Bill Gates tivesse crescido na Polônia, por exemplo. Enquanto isso, os internautas de todo o mundo possuem múltiplas identidades: somos indivíduos, cidadãos e habitantes de um Estado em particular (ou dois), usuários de plataformas e produtos específicos. Abordagens. Somos também seres humanos com possibilidades sem precedentes de comunicação direta com outros humanos e, portanto, de desenvolver o ethos dos "cidadãos do mundo", ainda que essa realidade legal ainda não esteja a nosso alcance. Parece-me que, ao pensarmos na maneira com a qual a informação nos é fornecida, temos quatro abordagens possíveis. 1) O Estado no qual vivo decide o que posso e o que não posso ver, e tudo bem. 2) As grandes empresas das quais dependo (Google, Yahoo, Baidu, Microsoft, Apple, China Mobile) escolhem o que posso ver, e tudo bem. 3) Quero ser livre para ver o que quiser: notícias sem censura de todas as partes do mundo, toda a literatura mundial, manifestos de todos os partidos e movimentos políticos, propaganda jihadista, instruções para a fabricação de bombas, detalhes íntimos sobre a vida particular de outras pessoas, pornografia infantil - tudo deve ser disponibilizado livremente e sou eu quem decide o que ver ou não (opção libertária radical). 4) Todos devem ser livres para ver o que quiserem, com exceção daquele conjunto limitado de conteúdos que regras globais claras e específicas determinem que não deve ser disponibilizado. A tarefa dos Estados, empresas e internautas deve ser então a de fazer valer essas normas internacionais. Atualmente, temos uma combinação das opções 1 e 2. O desenvolvimento da tecnologia nos dará, cada vez mais, a opção 3, quer gostemos disto ou não. A opção 4 é, no momento, um sonho ideal. Ainda assim, é à opção 4 que devemos aspirar. É na esfera das informações que o mundo está se transformando numa aldeia global de maneira mais rápida e intensa e, portanto, é a esfera das informações a que mais precisa de um debate global sobre as regras da aldeia. Se esse debate não for realizado em breve, aquilo que será exibido em nossas telas será o resultado de uma disputa entre o poder antiquado do Estado onde o internauta está, o novo poder das gigantescas empresas do setor da informação, a força insurgente das novas tecnologias da informação e a ingenuidade individual dos internautas. Trata-se de um resultado provável, mas não é o melhor possível. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL É HISTORIADOR E ESCRITOR

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