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Entre os escombros

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Por Mario Vargas Llosa
Atualização:

Escrevo este artigo no segundo dia do cessar-fogo em Gaza. Os tanques israelenses retiraram-se, os bombardeios e os lançamentos de foguetes cessaram, enquanto ambas as partes negociam no Cairo uma prorrogação da trégua e um acordo de grande alcance que assegure a paz entre os adversários. O primeiro é possível, sem dúvida, principalmente agora que Binyamin Netanyahu declarou-se satisfeito - "missão cumprida" - com os resultados do mês de guerra contra os habitantes do território. O segundo, porém, uma paz definitiva entre Israel e Palestina, por enquanto é pura quimera. O balanço da guerra de quatro semanas é (até o momento em que escrevo) o seguinte: 1.867 palestinos mortos (entre eles 427 crianças) e 9.563 feridos, meio milhão de refugiados e cerca de 5 mil casas arrasadas. Israel perdeu 64 militares e 3 civis e os terroristas do Hamas lançaram sobre o seu país 3.356 foguetes, dos quais 578 foram interceptados por seu sistema de defesa e os demais causaram apenas danos materiais. Ninguém pode negar a Israel o direito de defesa contra uma organização terrorista que ameaça sua existência, entretanto, cabe perguntar se tamanha carnificina contra uma população civil, a destruição de escolas, hospitais, mesquitas, locais onde a ONU acolhia refugiados, é tolerável dentro de limites civilizados. Além disso, semelhante extermínio e destruição indiscriminada se abatem contra a população de um retângulo de 360 quilômetros quadrados, submetida por Israel, desde que, em 2007, lhe impôs um bloqueio por mar, ar e terra, a uma lenta asfixia, impedindo-a de importar e exportar, pescar, receber ajuda, em suma, privando-a das mais elementares condições de sobrevivência. Não falo por ter ouvido falar. Estive duas vezes em Gaza e vi com meus próprios olhos a aglomeração, a miséria indescritível e o desespero em que vivem as pessoas nessa ratoeira. A razão de ser da invasão de Gaza era proteger a sociedade israelense destruindo o Hamas. Foi possível a eliminação dos 32 túneis que o Tsahal tomou e destruiu? Netanyahu afirma que sim, mas sabe muito bem que mente e, ao contrário, em vez de separar definitivamente a sociedade civil de Gaza da organização terrorista, a guerra devolverá ao Hamas o apoio dos habitantes que estava perdendo a passos gigantescos por seu fracasso no governo de Gaza e por seu fanatismo insano. Isso o levou a unir-se ao Fatah, seu inimigo mortal, aceitando não ter representantes nos governos da Palestina e de Gaza e, até mesmo, admitindo o princípio do reconhecimento de Israel exigido por Mahmoud Abbas, o presidente da Autoridade Palestina. Infelizmente, o Hamas, que estava à beira do colapso, sai revigorado dessa tragédia, com o rancor, o ódio e a sede de vingança que a população dizimada de Gaza sentirá dessa chuva de morte e destruição em que vem padecendo nas últimas quatro semanas. O espetáculo das crianças com o ventre rasgado e das mães enlouquecidas de dor cavando entre as ruínas, assim como o das escolas e das clínicas arrasadas - "um ultraje moral e um ato criminoso", segundo o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon - não reduzirá, mas multiplicará o número de fanáticos que querem Israel fora do mapa. O aspecto mais terrível dessa guerra é que ela não resolverá o conflito palestino-israelense, mas o agravará, e constitui apenas mais uma sequência numa cadeia interminável de atos terroristas e enfrentamentos armados com a possibilidade de estender-se a todo o Oriente Médio e provocar um verdadeiro cataclismo. O governo israelense está convencido, desde os tempos de Ariel Sharon, de que não há negociação possível com os palestinos e, portanto, a única paz alcançável é a que Israel imporá por meio da força. Por isso, apesar das rituais declarações em favor do princípio de dois Estados, Netanyahu sabotou sistematicamente todas as tentativas de negociação, como ocorreu com as conversações que o presidente Barack Obama e o secretário de Estado John Kerry se empenharam em promover assim que este assumiu a chancelaria, em abril do ano passado. Por isso, o primeiro-ministro apoia, às vezes em sigilo, e às vezes de maneira agressiva, a multiplicação dos assentamentos ilegais que transformaram a Cisjordânia, território que teoricamente deveria ser ocupado pelo Estado Palestino, num queijo suíço. Essa política tem um apoio muito grande entre o eleitorado israelense, no qual o setor moderado, pragmático e profundamente democrático, que defendia a solução pacífica do conflito por meio de negociações autênticas, foi encolhendo até tornar-se uma minoria quase desprovida de influência na política oficial. É verdade que ali ainda fazem ouvir suas vozes pessoas como David Grossman, Amos Oz, A.B. Yehoshua, Gideon Levy, Etgar Keret e muitos outros, salvando a honra de Israel com suas firmes posições e seus protestos, mas o certo é que cada vez seu número se reduz e elas têm menos eco numa opinião pública que foi se tornando mais radical e autoritária. É notório que em seu próprio governo Netanyahu tem ministros, como Avigdor Lieberman, que o consideram um fraco e ameaçam retirar o apoio dos seus partidos se ele não castigar com mais dureza o inimigo. Cegados pela indiscutível superioridade militar de Israel sobre todos os seus vizinhos, em especial a Palestina, eles chegaram a acreditar que selvagerias como a de Gaza garantem a segurança de Israel. A verdade é exatamente o contrário. Embora ganhe todas as guerras, Israel se enfraquece cada vez mais, porque perdeu todas as credenciais de país heroico e democrático, que transformou desertos em jardins e foi capaz de assimilar num sistema livre e multicultural gente vinda de todas as regiões, línguas e costumes, e foi assumindo cada vez mais a imagem de um Estado dominador e prepotente, colonialista, insensível a apelos de organizações internacionais, confiando somente no apoio automático dos EUA e em sua própria potência militar. A sociedade israelense não pode imaginar, em sua própria representação política, o terrível efeito que tiveram no mundo inteiro as imagens dos bombardeios contra a população civil de Gaza, a das crianças despedaçadas e as das cidades convertidas em montes de escombros, e como tudo isso o vem transformando de vítima em algoz. A solução do conflito entre Israel e os palestinos não virá de ações militares, mas de uma negociação política. Foi o que disse, com argumentos muito lúcidos, Shlomo Ben Ami, que foi chanceler de Israel precisamente quando as negociações com os palestinos - em Washington e Taba, nos anos 2000 e 2001 - estavam perto de dar frutos. O que o impediu foi a insensata negativa de Yasser Arafat de aceitar as grandes concessões que Israel fizera. Em seu artigo A Armadilha de Gaza (El País, 30 de julho), ele afirma que "a continuidade do conflito palestino debilita as bases morais de Israel e sua posição internacional" e "o desafio para Israel é vincular sua tática militar e sua diplomacia a uma meta política claramente definida". Esperemos que vozes sensatas e lúcidas, como as de Shlomo Ben Ami, acabem sendo ouvidas em Israel. E esperemos que a comunidade internacional atue com mais energia no futuro para impedir atrocidades como a que Gaza acaba de sofrer. Para o Ocidente, o que ocorreu com o Holocausto judeu, no século 20, foi uma mancha de horror e de vergonha. Que a agonia do povo palestino não se transforme nisso também no século 21. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA MARIO VARGAS LLOSA É PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA

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