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É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

Opinião|Equação sectária

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Atualização:

Desde que o Estado Islâmico (EI) iniciou sua campanha militar, há dois anos e meio, a falta de grupos combatentes para enfrentá-lo no terreno tem sido o seu grande trunfo e a explicação para sua longevidade como força de ocupação no Iraque, na Síria e, mais recentemente, na Líbia. Os bombardeios aéreos conduzidos pelos EUA e seus aliados europeus e árabes, a partir de meados de 2014, foram importantes para conter os avanços do EI, cortar suas linhas de suprimento e inibir suas atividades de produção e venda de petróleo. Entretanto, como o grupo ocupa cidades onde se mistura com a população civil, são ineficazes para desalojá-lo.  Somente a guerra de guerrilha, que implica enormes baixas, para as quais as opiniões públicas dos países dessa aliança não estão preparadas, é capaz de derrotar militarmente o EI. A mobilização de forças locais para recuperar o território esbarrou em divisões étnicas e religiosas, no caso de Iraque e Síria, e políticas e tribais, no caso da Líbia. No Iraque, o EI ocupou territórios povoados pela minoria árabe sunita. Essa população se sente marginalizada por governos eleitos sucessivamente pela maioria xiita, que os alijam de altos cargos, tanto civis quanto militares, e também de negócios lucrativos com o Estado. Os sunitas não tiveram ânimo de se sacrificar para defender uma nação da qual não se sentem pertencentes. Agora, a unidade contraterrorismo do Exército iraquiano, treinada e equipada pelas forças especiais americanas, avança para tomar a cidade de Fallujah, no início de uma campanha de grande fôlego para derrotar o EI no Iraque. Antes desse avanço, no entanto, a periferia de Fallujah foi cercada por milícias xiitas, patrocinadas pelo Irã. Alguns desses milicianos revestiram sua munição com retratos do xeque Nimr al-Nimr, executado em janeiro na Arábia Saudita, por apoiar as manifestações da minoria xiita no reino governado pela monarquia sunita. Esse ânimo de acerto de contas dos milicianos xiitas acendeu o alarme quanto a um possível massacre da população sunita de Fallujah que, de 300 mil, quando da ocupação do Iraque pelos EUA, em 2003, reduz-se hoje a 50 mil – impedidos de fugir pelo EI – depois de sucessivas guerras travadas na cidade.   Tomou-se o cuidado de não permitir que os xiitas entrassem na cidade. No entanto, foram eles que avançaram sob a barragem de artilharia do EI no perímetro de Fallujah, quando não se sabia o que se encontraria ali. Na Síria, a situação é igualmente complexa. A campanha para retomar a Província de Raqqa, reduto do EI, que mantém na capital de mesmo nome o seu quartel-general, é liderada pelos guerrilheiros curdos sírios. Em menor número, lutam a seu lado combatentes árabes. Ambos com apoio dos EUA. Nessa região nordeste da Síria, a população é predominantemente árabe.  Por mais penoso que tenha sido viver sob o EI, que humilha a população local, impondo um código de conduta estranho à maioria, num país historicamente multiconfessional e tolerante, ser liberado por uma força de outra etnia, apoiada pela superpotência global, causa tensões. Sem falar nas inquietações que isso provoca na Turquia, que até recentemente apoiou o EI e outros grupos islâmicos radicais e vê nos curdos uma ameaça à sua integridade territorial. A milícia xiita libanesa Hezbollah, patrocinada pelo Irã, também tem estado no front da guerra contra o EI na Síria. Na Líbia, repete-se o padrão, embora aqui a questão não seja de cunho étnico-religioso, mas político e tribal. Sirte, simbolicamente a terra natal do ditador morto Muamar Kadafi, é atacada pelo flanco oeste pelas brigadas da cidade de Misrata, enquanto a força paramilitar Guarda das Instalações de Petróleo, que controla parte da costa oriental, avança pelo leste.  Os dois lados são guiados pelo objetivo comum de derrotar o EI, mas aparentemente agem de forma não coordenada e tudo indica que, uma vez atingido esse objetivo, passem a combater um ao outro, assim como a outras brigadas e grupos radicais islâmicos que desafiam a autoridade do governo de união nacional. A força da ideologia do “Califado Islâmico” está na pretensão de apagar, “sob a espada do Islã”, as fronteiras do Oriente Médio e do Norte da África, desenhadas arbitrariamente segundo os interesses de Grã-Bretanha, França e Itália, na 1.ª Guerra. Ironicamente, no esforço para derrotá-lo, o mundo árabe-muçulmano se defronta com as contradições entre suas geografias humana e política, que fragilizam os seus Estados quando não estão submetidos a regimes autocráticos.

Opinião por Lourival Sant'Anna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais

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