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É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais. Escreve uma vez por semana.

Opinião|Erros de lado a lado

Radicalismo de Rajoy e separatistas potencializou crise criada por plebiscito

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Atualização:

Por um desses caprichos da história, e porque grupos radicais em extremos opostos se retroalimentam, o plebiscito da independência da Catalunha ocorreu no momento em que a região é governada por separatistas, enquanto a Espanha está sob o Partido Popular (PP), que tem suas raízes na ditadura franquista (1939-75), fundada no desejo de esmagar as aspirações de autonomia e construir um Estado forte e centralizado.

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Os instintos radicais dessas duas forças explicam a escalada do conflito na Espanha, na qual cada passo dado por um lado impulsionou o seguinte dado pelo outro, chegando a uma situação quase sem volta. Sem querer, o primeiro-ministro Mariano Rajoy deu enorme força política à consulta popular, com a repressão levada a cabo pela Polícia Nacional. Qual a necessidade de agredir eleitores, tentar impedi-los fisicamente de votar em uma consulta inconstitucional? 

A atitude de Rajoy traiu uma desconfiança do primeiro-ministro e de seu partido nas instituições democráticas, como a Constituição, a Justiça e o Parlamento nacional. O uso da força pelo Estado perde legitimidade quando não envolve o senso da proporção. E a democracia requer paciência. Era deixar que os catalães fizessem sua votação, enquanto o governo central adotava as medidas legais para anulá-la. 

Rajoy tinha a razão, e a perdeu. Muito provavelmente haverá uma solução negociada para esse conflito, envolvendo a devolução de parte da autonomia conquistada na lei catalã de 2006 e perdida na revisão do Tribunal Constitucional em 2010 (a pedido do PP). Rajoy apenas a tornou mais custosa para ele mesmo e o país como um todo.

É uma complicação que vem em má hora também para a União Europeia. Os cidadãos do bloco que acreditam no livre comércio e circulação de pessoas, na coordenação das políticas econômica, externa e de defesa, enfim, em um destino comum para as democracias europeias, representam a maioria em seus respectivos países, como tem ficado claro em todas as eleições. Entretanto, há uma fatia crescente de europeus que deseja um retorno ao Estado nacional do século passado.

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O motor psicológico desse nacionalismo é a identidade cultural, religiosa e étnica. Essa motivação irracional se junta a justificativas racionais, como a suposta disputa por empregos com os imigrantes, o deslocamento de empresas em busca de mão de obra mais barata e a ameaça do terrorismo. A dinâmica é idêntica à que leva ao separatismo: explicações de ordem prática, do tipo “pagamos mais impostos do que recebemos em serviços e, portanto, carregamos o país nas costas”, aliam-se ao desejo de proteger a identidade cultural ameaçada pelo “outro”.

Não que os povos não devam cultivar sua língua e cultura, que afinal fazem parte do patrimônio da humanidade. Não que a Catalunha não tenha razão em querer recuperar a autonomia perdida, ou não possa controlar seus impostos e orçamento. 

O problema é a exploração política dessa identidade e dessas aspirações, levadas ao extremo, como fez o governo regional na condução desse plebiscito, que aliás numericamente comprovou que menos da metade dos catalães queria a independência: 90% votaram “sim”, mas apenas 42% compareceram.

A Europa é um caldeirão de etnias e aspirações nacionais: País Basco, na Espanha; Córsega, na França; Baviera, na Alemanha; Escócia e País de Gales, no Reino Unido, entre tantos outros. O projeto da União Europeia envolve proteger as identidades culturais e mantê-las nessa esfera, evitando que virem ideologia e impeçam uma integração política e econômica que favorece a todos. É por isso que o plebiscito e a reação do governo espanhol representam um enorme retrocesso.

Opinião por Lourival Sant'Anna

É colunista do 'Estadão' e analista de assuntos internacionais

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