Na guerra de Putin na Ucrânia, EUA e Otan não são espectadores inocentes; leia o artigo

Os EUA permitiram o expansionismo da Otan, quando a Rússia acreditava que ela seria aliada de Moscou

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Por Thomas Friedman (The New York Times)
Atualização:

Quando eclode um conflito de grandes proporções como o da Ucrânia, os jornalistas sempre se perguntam: “Onde devo me posicionar?” Kiev? Moscou? Munique? Washington? Nesse caso, minha resposta não seria uma dessas cidades. O único lugar em que poderíamos estar para entender essa guerra é dentro da cabeça do presidente russo, Vladimir Putin. Ele é o mais poderoso e irrefreável líder russo desde Stalin, e o momento escolhido para essa guerra é um produto das ambições, estratégias e queixas dele.

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Mas, dito tudo isso, os Estados Unidos não são exatamente inocentes defensores da paz.

Como assim? Putin enxerga a ambição da Ucrânia de abandonar sua esfera de influência como uma perda estratégica e uma humilhação pessoal e nacional. No seu discurso de segunda-feira, Putin literalmente disse que a Ucrânia não pode reivindicar independência, sendo em vez disso parte integral da Rússia — seu povo é “ligado ao nosso por laços de sangue e de família”. E é por isso que a investida de Putin contra o governo livremente eleito da Ucrânia dá a impressão de ser o equivalente geopolítico de um assassinato em defesa da honra.

Vladimir Putin assina decreto que reconhece independência de regiões separatistas no leste da Ucrânia, em 21 de fevereiro Foto: Aleksey Nikolsky/EFE/

Putin está basicamente dizendo aos ucranianos (que parecem mais interessados em ingressar na União Europeia do que na Otan): “Vocês se apaixonaram pelo sujeito errado. Não sairão dessa com a integração à UE nem à Otan. E se eu tiver que golpear seu governo até a morte e arrastar vocês para casa, farei isso”.

Trata-se de um recado feio e visceral. Ainda assim, temos aqui um contexto que é relevante. O apego de Putin à Ucrânia não é apenas uma questão de nacionalismo místico.

Na minha opinião, esse incêndio é estimulado por duas grandes brasas. A primeira foi a decisão impensada dos EUA nos anos 90 de expandir a Otan após (ou mesmo apesar) do colapso da União Soviética.

E a segunda brasa, muito maior, é o uso cínico por parte de Putin dessa expansão da Otan para mais perto das fronteiras russas, estimulando assim a união dos russos em torno dele para ocultar o grande fracasso da sua liderança. Putin falhou completamente em transformar a Rússia em um modelo econômico capaz de realmente atrair seus vizinhos em vez de afastá-los, ou de inspirar seus maiores talentos a permanecerem no país em vez de entrar na fila para obter um visto para o Ocidente.

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Precisamos olhar para ambas as brasas. A maioria dos americanos prestou pouca atenção na expansão da Otan no fim dos anos 90 e início dos anos 2000, chegando a países da Europa Central e Oriental como Polônia, Hungria, República Checa, Letônia, Estônia e Lituânia, todos ex-integrantes da antiga União Soviética ou de sua esfera de influência. Não é mistério o motivo que levou tais países a desejarem uma aliança obrigando os EUA a virem em seu socorro no caso de um ataque por parte da Rússia, sucessora da União Soviética.

O mistério era por que os EUA, que durante a Guerra Fria sonharam com a possibilidade de um dia a Rússia passar por uma revolução democrática e com um líder que, dentro de suas hesitações, tentasse transformar a Rússia em uma democracia e se juntar ao Ocidente, optaram por empurrar rapidamente a Otan até as fronteiras russas quando este país enfraqueceu.

Um pequeno grupo de funcionários do governo e estudiosos da política externa da época, entre os quais me incluo, fez essa mesma pergunta, mas nossa voz foi abafada.

A voz mais importante, e também a única, no alto escalão do governo Clinton que fazia essa pergunta era ninguém menos do que o então secretário da Defesa, Bill Perry. Ao recordar esse momento anos mais tarde, Perry disse, em 2016, ao público de uma conferência do jornal The Guardian:

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“Nos anos mais recentes, a maior parte da culpa pode ser atribuída às medidas adotadas por Putin. Mas, nos primeiros anos, devo dizer que os EUA merecem boa parte da culpa. Nossa primeira reação que deu início a esse rumo desastroso foi o início da expansão da Otan, incluindo países da Europa Oriental, alguns dos quais fazem fronteira com a Rússia.

“Na época, trabalhávamos em proximidade com a Rússia e eles começavam a se acostumar com a ideia de que a Otan poderia ser uma aliada, e não uma inimiga … mas ficaram muito abalados com a presença da Otan bem nas suas fronteiras, e fizeram um forte apelo para que não levássemos adiante esses planos.”

No dia 2 de maio de 1998, imediatamente após o senado americano ratificar a expansão da Otan, telefonei para George Kennan, o arquiteto da bem-sucedida política americana de contenção da União Soviética. Ingressando no departamento de Estado em 1926 e servindo como embaixador dos Estados Unidos em Moscou em 1952, Kennan era claramente o maior especialista americano em questões russas. Mesmo aos 94 anos, com a voz já fraca, ele revelou uma mente ainda aguçada quando perguntei sua opinião a respeito da expansão da Otan.

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Vou compartilhar a resposta completa de Kennan:  “Acredito que seja o início de uma nova guerra fria. Acho que os russos vão, gradualmente, reagir de maneira bastante adversa, o que será refletido nas políticas deles. Me parece um erro trágico. Não havia nenhuma razão para isso. Ninguém está ameaçando ninguém. Tal expansão faria os pais fundadores dos EUA revirarem nas suas tumbas."

“Assinamos um acordo para proteger uma série de países, mesmo sem ter os recursos ou a intenção de fazê-lo com um mínimo de seriedade. (A expansão da Otan) foi simplesmente uma decisão leviana de um Senado sem nenhum interesse real nas questões internacionais. O que me incomoda é a superficialidade e falta de informação vistas ao longo desse debate no Senado. Fiquei particularmente incomodado com as referências à Rússia como se se tratasse de um país louco para atacar a Europa Ocidental."

“Será que as pessoas não entendem? Na Guerra Fria, nossas diferenças eram com o regime comunista soviético. E agora estamos virando as costas justamente para o povo que realizou a maior revolução pacífica da história para derrubar esse regime soviético. E a democracia russa é, no mínimo, tão avançada quanto a desses países que acabamos de prometer que defenderemos da Rússia. É claro que a Rússia vai reagir mal, e então (os responsáveis pela expansão da Otan) dirão que eles sempre alertaram para essa personalidade russa — mas isso é simplesmente um erro.”

Foi EXATAMENTE isso que ocorreu.

É verdade que a evolução da Rússia no pós-Guerra Fria para um sistema liberal — como ocorreu com a Alemanha e o Japão após a 2.ª Guerra — era bastante incerta. De fato, levando em consideração a falta de experiência da Rússia com a democracia, tratava-se de uma aposta difícil. Mas, na época, alguns de nós acreditavam que tal aposta valia a pena, porque até uma Rússia pouco democrática — se tivesse sido incluída em um novo ordenamento de segurança europeu, e não excluído dele — poderia ter muito menos interesse ou incentivo para ameaçar seus vizinhos.

É claro que nada disso justifica o desmembramento da Ucrânia por parte de Putin. Durante seus dois primeiros mandatos na presidência (de 2000 a 2008), Putin fez ocasionais queixas a respeito da expansão da Otan, mas não foi além disso. Na época, o preço do petróleo estava em alta, como a popularidade doméstica de Putin, pois ele presidia um grande crescimento das rendas individuais dos russos após uma década de um doloroso empobrecimento e reestruturação na esteira do colapso do comunismo.

Mas, ao longo da década passada, com a gradual estagnação da economia russa, Putin teria de apostar em reformas econômicas mais profundas, o que poderia enfraquecer seu controle, ou dobrar a aposta na cleptocracia do capitalismo de compadrio. Ele optou pela segunda alternativa, explicou Leon Aron, do American Enterprise Institute, especialista em Rússia e autor de Yeltsin: A Revolutionary Life, que atualmente escreve um livro a respeito do futuro da Rússia de Putin. E para camuflar suas intenções e desviar as atenções dessa escolha, Putin mudou a base de sua popularidade, deixando de "ser o distribuidor da recém-descoberta riqueza russa e reformista econômico para assumir o papel de defensor da pátria", disse Aron.

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E justamente quando Putin optou por razões políticas domésticas para se tornar um vingador nacionalista e um permanente “presidente de período de guerra”, como descreve Aron, o que estava à sua espera era a ameaça mais emocional para unir atrás dele o povo russo: “O alvo fácil da expansão da Otan”.

E ele tem se refestelado nesse prato desde então, mesmo sabendo que a Otan não tem planos de expansão para incluir a Ucrânia.

Os países e os líderes costumam reagir à humilhação de duasmaneiras diferentes: agressão ou introspecção. Depois que a China sofreu aquilo que descreve como “um século de humilhações” nas mãos do Ocidente, a resposta veio com Deng Xiaoping, dizendo essencialmente: “Vamos mostrar a vocês. Vamos superá-los no seu próprio jogo”.

Quando Putin se sentiu humilhado pelo Ocidente após o colapso da União Soviética e a expansão da Otan, ele respondeu: “Vou mostrar a vocês. Vou descontar na Ucrânia”.

Sim, a situação é mais complicada do que isso, mas o que quero dizer é: essa guerra é de Putin. Ele é um líder ruim para a Rússia e para os seus vizinhos. Mas os EUA e a Otan não são espectadores inocentes nesta evolução. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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