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'Estabilidade e estado centralizador mantêm Putin no poder', diz pesquisador

Para professor da USP, país não é uma ditadura, mas governo tem de tomar cuidado com medidas como o referendo que permitiu a Putin ficar no poder até 2036

Por Paulo Beraldo
Atualização:

As manifestações contra o governo que ocorrem ao longo de julho no Extremo Oriente da Rússia, a milhares de quilômetros de Moscou, são um termômetro da queda de popularidade do presidente russo e do desgaste ao completar 20 anos no comando do país. Iniciados após a substituição de um popular governador regional, os atos tomaram as ruas de Khabarovsk, cidade de 600 mil habitantes, e se tornaram os maiores da região contra o governo desde os anos 1990.

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Muitos moradores que nunca tinham se envolvido com política foram às ruas mostrar seu descontentamento com a corrupção, a pobreza e o autoritarismo do governo de Vladimir Putin. Em abril, o índice de aprovação do presidente caiu para 59%, o mais baixo em 20 anos, e muito longe do apoio de quase 90% na época da anexação da Crimeia, em 2014, de acordo com o principal centro de pesquisas independente do país, o Levada Center. 

Na avaliação do historiador Angelo Segrillo, pesquisador da USP que estuda União Soviética e Rússia há quase 40 anos, os protestos são um sinal do desgaste de Putin, que deveria se preocupar com a forma como usa mecanismos estatais para reprimir a oposição e vozes dissonantes. Um desses mecanismos foi um referendo que permitiu mudanças na Constituição aprovado em julho. Na prática, a mudança permite que o ex-agente do serviço secreto russo permaneça no cargo até 2036. A votação foi vista como fraudulenta por críticos e analistas na Rússia e no exterior. Abaixo, a entrevista completa concedida à TV Estadão

Qual o peso das manifestações que ocorrem em Khabarovsk, no Extremo Oriente, que levaram milhares às ruas ao longo deste mês contra o governo? 

Por um lado, julho é tradicionalmente o mês das manifestações. Por outro lado, as manifestações demonstram um desgaste do Putin depois de muitos anos no poder. Ele foi muito popular no início principalmente porque foi associado a uma melhoria nos anos 2000 depois da crise econômica nos anos 1990. Mas essa melhoria vem sofrendo baques desde a crise de 2008-2009 e por conta das sanções. Esse desgaste, apesar de Putin ainda ser muito popular, se manifesta em ações que ocorrem quase todo ano por diferentes motivos. Elas mostram um cansaço de uma parte da população.

O que seria preciso para que esse cansaço se tornasse de fato um incômodo a Putin, que está direta ou indiretamente no poder desde 2000? 

A popularidade do Putin tem duas pontas - e uma é a melhoria econômica. A crise da passagem da União Soviética para a Rússia foi maior do que a depressão dos EUA na década de 1930. Mas, pelo lado político, o Putin respondeu a uma ansiedade que os russos tinham nos anos 1990. O Boris Ieltsin dava muito poder aos governos regionais, na ponta, em troco de apoio federal, o que criou muitas tendências centrífugas. A maior foi a Chechênia.

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Os russos tinham medo que a Rússia ficasse como a Iugoslávia, que se fragmentasse, acabasse. O Putin recentralizou. Muitos russos, mesmo ele tendo esse lado meio autoritário, apoiaram essa recentralização. O Putin teria que ter uma piora maior na economia e a situação teria que estar pelo lado político muito pior do que está atualmente. Há uma certa estabilidade, talvez autoritária. 

O presidente Vladimir Putin em discurso Foto: Alexander Nemenov/Pool via REUTERS

No começo do mês, os russos votaram, entre outras medidas, para que Putin pudesse ficar no poder até 2036. No Ocidente, a visão de um governo que dure muito é negativa. Na Rússia é diferente. O senhor pode explicar esse sentimento? 

A questão principal é a do estado forte e centralizado. Na época do estado czarista, baseado em Moscou, extremamente centralizado e forte, os russos conseguiram não só expulsar os invasores como criar uma civilização, um império. Isso marcou a psique social dos russos. Eles tiveram um estado florescente culturalmente, o estado kievano, mas descentralizado, desunido, que foi conquistado.

E com um estado centralizado e a civilização russa floresceu. Então, o Putin é um pouco associado a essa questão do estado forte e centralizado. Essa experiência de séculos foi confirmada pela experiência pós-soviética, quando o Boris Ieltsin descentralizou e houve o perigo da fragmentação. Muitos tiveram medo de que o país se estilhaçasse e deixasse de existir. O segredo do Putin é que ele se associou à ideia de um estado centralizado e forte que acabou com o perigo de Rússia se desintegrar. 

Manifestantes no Extremo Oriente da Rússia em apoio ao governo local e contra Vladimir Putin Foto: Sergey Ponomarev/The New York Times

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É cada vez mais forte a disputa entre Estados Unidos e China, um conflito que anteriormente era entre americanos e a União Soviética. Hoje, onde está a Rússia no meio dessa disputa? 

Mudou muito. Do século 20 para cá, o centro de gravidade econômico do mundo está se mudando para o leste, para a China. Alguns acham que vai ser a maior economia do mundo nos próximos anos. E a Rússia tem uma atitude meio dúbia em relação à China. Os EUA temem a aliança de Rússia e China, mas acho que eles não precisam se preocupar com isso. É muito interessante para a Rússia se associar à China para ver se acaba com a hegemonia política e militar americana - inclusive a Rússia está nos BRICS com o Brasil, Índia, a África do Sul.

Mas, historicamente, desde séculos, são duas civilizações que se bateram na Ásia Central. Há uma desconfiança histórica porque tem o casamento perfeito que os russos temem: uma China com uma grande população e uma Rússia com um Extremo Oriente com muito pouca população. Por um lado, a Rússia quer sim, principalmente através dos BRICS, fazer uma aliança com a China, mas há um pé atrás por essas questões históricas e porque China vai mandar no mundo no século 21. 

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Olhando hoje para a economia e para a sociedade russa, quais os desafios mais urgentes? 

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Eles devem tomar cuidado com a democracia deles. Mas não sou daqueles que acha que a Rússia é uma ditadura. O Putin está no poder porque a maioria dos russos vota nele, há uma oposição que não é forte o suficiente para ganhar no voto, e claro que ele usa a máquina do estado para reprimir. Esses mecanismos repressivos, à medida que os problemas da Rússia aumentam, esse uso também aumenta.

Esse último referendo é um exemplo disso em que passaram medidas que solapam um pouco da democracia. Mas existem partidos de oposição, jornais de oposição. A maioria dos canais federais realmente pertence ao governo, mas existem canais regionais, e principalmente a internet. Os russos, pela internet, têm informações. Mas isso de a pessoa se eternizar no poder é um problema para a democracia. 

Manifestantes que nunca foram às ruas aproveitaram os atos em Khabarovsk para se envolver politicamente Foto: Sergey Ponomarev/The New York Times

Em que parte do espectro político está o Vladimir Putin? 

Muita gente associa o Putin à esquerda, outros à direita pelo conservadorismo e nos hábitos culturais. Diria que ele é de centro, um político pragmático. Ele veio da escola do KGB antigo, da União Soviética, era um pessoal bastante pragmático, não se metia em política até porque era perigoso. Então, ele une algumas coisas que no Ocidente são vistas como de esquerda ou centro-esquerda, ainda relembra algumas coisas da União Soviética, mas não quer voltar a um comunismo. A política dele não é liberal pela economia, ele mantém proteções. Mas na questão cultural, na questão da vida diária do povo, ele é bastante conservador. 

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