‘Estamos dispostos a virar a página’

Ex-senadora, capturada pela guerrilha enquanto concorria à presidência, afirma que a paz no país é ‘alcançar um oásis’

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Por Jamil Chade  CORRESPONDENTE e GENEBRA
Atualização:

Ela foi o símbolo das vítimas da guerra civil de 52 anos na Colômbia. Seu sequestro ganhou notoriedade internacional e mobilizou governos em todo o mundo. Agora, a colombiana Ingrid Betancourt insiste que chegou a hora de “virar a página”, começando pelo acordo de paz que será assinado amanhã entre o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), principal guerrilha do país – e responsável pelo sequestro de Ingrid. 

Em entrevista exclusiva ao Estado, a ex-candidata à presidência colombiana avalia os principais desafios do futuro, mas comemora o acordo e aponta que a “sociedade terá Justiça”. Ingrid, que vive entre Londres e Paris, esteve em Genebra nesta semana para encontros no Conselho de Direitos Humanos da ONU. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Ingrid Betancourt, ex-refém das Farc e ex-candidata à presidência da Colômbia Foto: Martial Trezzini/Keystone via AP

Como a sra. se sentiu diante desse acordo? Não foi uma surpresa, já que nos últimos meses me preparava para isso. Mas, claro, uma vez consolidado, foi uma enorme emoção. No fundo, esse é o acordo que devolve à Colômbia a capacidade de sonhar. É a esperança que volta. Éramos muito céticos em razão das experiências passadas de tentativas de acordos, que sempre nos frustravam.Por que essa negociação não fracassou, diferentemente das anteriores? Foi uma conjuntura muito específica e uma sequência de eventos. Primeiro, tivemos o fortalecimento das Forças Armadas na Colômbia. Não apenas militar, mas moralmente. Ela mudou o trato com a população. (Os militares) deixaram de ser inimigos de parte da população para ser seus protetores. Ao mesmo tempo, nas Farc, vimos sérias derrotas, com mortes de líderes. Eram aqueles que elaboravam as estratégias militares do grupo.

Ex-refém das Farc Ingrid Betancourt (esq.) ao lado do então ministro de Defesa da Colômbia Juan Manuel Santos (dir.) na base aérea de Catam (Comando Aéreo de Transporte Militar), em Bogotá, em 2008 Foto: AFP PHOTO/Rodrigo Arangua

 E qual foi a consequência? O grupo passou a ficar com seu segundo escalão, mas que não tinha a mesma força dentro do secretariado. Na cúpula das Farc ficaram, portanto, membros que tinham prioridades políticas, acima de tudo. Mas um aspecto fundamental ainda foi a pressão colocada pelos EUA sobre as instituições colombianas para que tratassem dos paramilitares. Essas eram forças usadas para lutar contra grupos subversivos de esquerda. Primeiro, portanto, se negociou com essas forças paramilitares e isso foi uma passo decisivo do Estado.Por quê? Seria difícil convencer as Farc a se desmobilizar e partir para o caminho político se seus inimigos não fossem desmobilizados. Isso deu um crédito ao Estado para acabar com a guerra. Abriu-se a possibilidade de iniciar uma negociação. Mas também há de se reconhecer que, em quatro anos de negociações, os atores envolvidos no processo souberam ser flexíveis para mudar a partir do que a outra parte indicava. Se há quatro anos alguém me dissesse que haveria deposição de armas e compromisso de ir aos tribunais, eu acharia que era impossível. Para a sociedade colombiana, isso foi excelente.A sra. foi uma das vítimas dessa guerra. Qual é o desafio desse acordo em garantir a Justiça para quem sofreu? Nunca haverá Justiça individual para nós. Existem três fatores nesse desafio de Justiça nesse acordo. O primeiro é o da Justiça moral. A obrigação de dizer a verdade, como no caso do governo ao limpar as mãos de sua responsabilidade no meu caso. Há também a Justiça social, ou seja, a sociedade entender o sofrimento das vítimas. Isso não será atingido facilmente. Na Colômbia, as vítimas são ainda vistas como culpadas pelo que ocorreu com elas. A legitimidade da dor é ainda difícil. Há uma indiferença em relação às vítimas. O terceiro aspecto é a recuperação física. Para uma vítima, a guerra acaba com uma vida. Perdemos parentes, tempo e recursos de trabalho. Nesse acordo, não existe um ressarcimento patrimonial.

Mas a sra. considera, então, que o acordo significa que a impunidade venceu? Não. Nesse acordo, não há justiça individual. Mas não há impunidade. São dois aspectos diferentes. Eu, como vítima, faço esse sacrifício, pois entendo que é muito importante um acordo de paz para os colombianos. Todos estamos dispostos a virar a página, com a condição de que haja a paz. Mesmo sem essa Justiça individual, os chefes que cometeram crimes de guerra vão pagar por isso. Pode-se debater se as penas serão severas ou não. Mas não haverá impunidade.Qual será o maior desafio para que o acordo prospere? Um dos desafios é o tempo. As regras vão mudar para a sociedade e ela terá de se adaptar. As forças militares, que eram as inimigas da guerrilha, hoje terão de garantir a segurança daquelas pessoas. Trata-se de uma mudança de mentalidade e de como a sociedade vai se relacionar com eles. Para isso, o Estado terá de construir alternativas para os guerrilheiros, que são cerca de 8 mil e vão querer entrar na sociedade.Como? Oferecendo trabalho, educação e uma remuneração que seja igual ou superior à que eles tinham na guerra. Isso envolverá mecanismos de estímulo e empresários dando exemplos. É necessário termos grandes empresas dando empregos para ex-guerrilheiros.E qual será o desafio para a guerrilha? Não cair nos mesmos erros da sociedade que ela criticava, ou seja, a corrupção. Uma das justificativas da guerrilha era de que lutava contra a corrupção dos grupos no poder. Agora, essa guerrilha vai precisar ser a força transformadora e uma força política que seja exemplo de limpeza. Nos últimos 20 anos, a onda na América Latina de governos da esquerda democrática foi muito importante. Ela foi fundamental para o amadurecimento democrático na região. Hoje, essas sociedades estão cobrando justamente esses governos pela corrupção. É uma transformação profunda.A paz na Colômbia vai levar os demais países da região a investigar internamente seus respectivos papéis em apoiar as Farc? A Colômbia precisa fazer um esforço para fechar um capítulo. Não se pode abrir constantemente processos que deem insegurança jurídica. Não se pode ter uma caça às bruxas para cobrar contas de quem apoia forças obscuras ou a guerrilha. A paz tem de ser a paz para todos. Agora, isso não quer dizer que, nos países vizinhos, não se queira entender como foi a relação com essas forças.O Brasil teve um papel importante na questão das Farc? Sim, foi uma relação importante. Talvez não como a da Venezuela, que era óbvia. Mas os vizinhos da Colômbia, por não quererem que o conflito entrasse em seus territórios, trataram de não ser afetados. Mas, ao se declarar neutros, foram permissivos com os guerrilheiros. Em diversas ocasiões, a diplomacia colombiana foi obrigada a tratar desse assunto com os vizinhos. Mas isso é parte do passado.E quais são seus planos? Pensa em voltar à Colômbia para se candidatar a algum cargo? Eu queria um tempo para pensar. Esses acontecimentos estão muito ligados à minha vida pessoal. Isso vai exigir que eu reflita, inclusive com meus filhos. Mas eu não queria fechar as portas. Quando deixei a Colômbia, depois de ser liberada, disse que não voltaria à política. Hoje, não quero dizer não.

O acordo de paz foi uma segunda libertação? Não diria uma segunda libertação. Mas foi chegar ao sossego. Chegar ao oásis.A paz leva a sra. a reavaliar algum momento do cativeiro? O passado não se reescreve. Talvez eu pense alguma coisa de forma diferente. Mas o importante é que vai haver Justiça para a sociedade.

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