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EUA treinam soldados em Moçambique para conter possível avanço do Estado Islâmico no país

Programa será, a princípio, modesto, com poucos homens das Forças Especiais americanas; antes, mercenários russos e sul-africanos tentaram dar apoio

Por Declan Walsh e Eric Schmitt
Atualização:

NAIRÓBI — Os soldados das Forças Especiais dos Estados Unidos começaram a treinar, nesta semana, tropas moçambicanas como parte de um esforço para impedir uma insurgência que se espalha pelo nordeste de Moçambique e que os oficiais americanos dizem estar ligada ao Estado Islâmico (EI). O levante, próximo de uma das maiores reservas de gás do mundo, já matou cerca de 2 mil civis e desabrigou 670 mil.

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O programa americano é modesto em tamanho e alcance: uma dúzia de homens das Forças Especiais vão treinar fuzileiros navais moçambicanos nos próximos dois meses. Mesmo assim, essa movimentação já sinaliza a entrada do Exército dos EUA nos esforços de contra-insurgência, que, até agora, vinham sendo apoiados principalmente por mercenários sul-africanos, que já enfrentam acusações de abusos dos direitos humanos.

A guerra em Moçambique é parte de uma alarmante expansão de insurgências que teriam laços com o Estado Islâmico em diversas regiões da África. No ano passado, integrantes do EI capturaram territórios na Província de Cabo Delgado, no norte do país, incluindo um porto no Oceano Índico, e decaptaram centenas de civis, de acordo com entidades de direitos humanos.

Soldado americano treina tropas do Chade em Atar, na Mauritânia; soldados de Moçambique também serão treinados Foto: Laetitia Vancon/The New York Times

“Eu não acho que alguém previu isso”, disse o coronel Richard Schmidt, vice-comandante das Forças Especiais dos EUA na África, em uma entrevista por telefone direto de Maputo, capital de Moçambique. “É preocupante que isso escale de modo tão rápido”, completou.

Na semana passada, os EUA classificaram formalmente o grupo, conhecido como Al-Sunna wa Jama’a, como uma ameaça terrorista global e impuseram sanções ao líder, Abu Yasir Hassan. No entanto, ainda não é claro quão fortes são os laços do Estado Islâmico no Iraque e na Síria com esse grupo, assim como com outros pela África.

A insurgência em Moçambique conta ainda com combatentes da Tanzânia, mas a maioria vem de uma área próxima, um lugar de pobreza profunda e corrupção endêmica. As principais publicações do Estado Islâmico não mencionam operações em Moçambique desde o fim do ano passado.

Alguns especialistas demonstram preocupação de que a classificação feita pelos EUA, de que o grupo teria relações com o Estado Islâmico, possa comprometer futuros esforços para encerrar o levante a partir de negociações.

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“Há preocupação de que essa classificação possa complicar o envio de assistência humanitária a Cabo Delgado e possíveis diálogos com os insurgentes de lá”, afirmou o vice-diretor da ONG Grupo de Crise Internacional (GCI, em português), Dino Mahtani, que recentemente visitou Moçambique. Mesmo assim, a rápida evolução do levante em Cabo Delgado surpreendeu o Exército dos EUA, diplomatas e contraterroristas.

Um grupo que somava cerca de duas dezenas de combatentes em 2017 cresceu para 800, com a capacidade de realizar ataques na vizinha Tanzânia, onde analistas acreditam que o grupo mantenha contato com redes criminosas e de contrabando, que fornecem armas e outros equipamentos.

Divisões entre o Exército do país e a polícia atrapalharam as forças moçambicanas de contra-ataque, que tiveram de recorrer à ajuda de soldados privados.

Em 2019, 160 homens do Grupo Wagner, uma organização paramilitar privada ligada ao Kremlin, voaram para Cabo Delgado. Eles rapidamente deixaram a região depois que ao menos sete integrantes do grupo foram mortos pelos insurgentes em Moçambique, de acordo com fontes americanas.

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Depois, Moçambique procurou os mercenários sul-africanos, especificamente com o Dyck Advisory Group, que chegaram equipados com pequenos helicópteros armados. A Anistia Internacional, no entanto, acusou recentemente os mercenários de possíveis crimes de guerra, incluindo o assassinato de civis. Assim, as ações do grupo foram limitadas.

O coordenador interino para contraterrorismo do Departamento de Estado americano, John T. Godfrey, disse a repórteres na semana passada que os EUA estavam “preocupados” com a presença de tropas privadas que “não ajudaram comprovadamente” a vencer a batalha contra o Estado Islâmico. "Francamente, é um cenário em Cabo Delgado que mais complica do que ajuda nas medidas para enfrentar a ameaça terrorista", afirmou Godfrey.

Um funcionário do alto escalão do Departamento de Estado, falando sob anonimato, disse que o programa de treinamento militar, com foco em habilidades básicas para os soldados, pode levar a uma ajuda mais ambiciosa dos americanos a Moçambique, incluindo apoio às vítimas de combate, planejamento e logística. Os EUA também pensam em oferecer assistência em inteligência ao país, segundo essa fonte.

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Na semana passada, o Departamento de Estado impôs sanções a um braço do Estado Islâmico na República Democrática do Congo e ao seu lider, Seka Musa Baluku. Combatentes muçulmanos filiados ao Estado Islâmico ainda estão ativos na Líbia, no Mali, na Nigéria e em outras partes do oeste afraicano

Especialistas locais, no entanto, afirmam que alguns desses grupos podem estar usando o nome do Estado Islâmico para espalhar medo e atrair fundos - quando, na verdade, os conflitos são de natureza essencialmente local.

“Eles podem estar camuflados pela bandeira preta (do Estado Islâmico)”, afirmou o analista do Grupo de Crise Mahtani. “Mas o que os motiva a matar? Pode ser uma jihad global, mas também podem ser os embates locais.”

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