As conversas reservadas com Tariq Aziz, o vice de Saddam Hussein, estão ainda frescas na memória do diplomata australiano Richard Butler. Grisalho, com óculos fundo de garrafa, o iraquiano tinha sempre debaixo do bigode um charuto Cohiba e à mão um copo de uísque, enquanto denunciava a miséria de seu povo e acusava o chefe dos inspetores da ONU - posto que Butler ocupava no fim dos anos 90 - de espionar e sabotar o Iraque.
Buscar armas de destruição em massa dentro de uma ditadura árabe não é tarefa fácil, relembra a todo momento o diplomata australiano, e a regra vale tanto para o Iraque dos anos 90 quanto para a Síria de hoje. "No caso sírio, há o agravante da guerra civil em curso em todo território, o que deve tornar o trabalho ainda mais difícil", previu Butler, hoje pesquisador na universidade americana Penn State, em entrevista por telefone ao
Estado
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Sob sua autoridade, inspetores da Comissão Especial das Nações Unidas (UNSCOM, na sigla em inglês) destruíram, entre 1998 e 1999, várias toneladas de agentes químicos de Saddam, arsenal capaz de provocar destruição brutal dentro e fora do Iraque. O sucessor do australiano na chefia dos inspetores, o sueco Hans Blix, confirmaria posteriormente que as armas iraquianas de destruição em massa de que se tinha conhecimento haviam sido destruídas no fim dos anos 90.
No entanto, o chamado "Relatório Butler", apresentado ao fim da missão, em 1999, deixou aberta uma brecha. Apesar dos dois anos de buscas e de mais de um milhão de páginas de documentos iraquianos analisadas, ele afirmava que era "desconhecido" o paradeiro de um "número não substancial" das armas de Saddam. Quatro anos depois, foi com base nessa incerteza - e "em alegações completamente falsas", diz hoje o diplomata - que o governo de George W. Bush invadiu o Iraque.
Butler compara inspeções de armas químicas ao jogo de rua em que o sujeito tem de adivinhar em qual dos três copinhos foi parar a moeda. Você aponta a uma das alternativas sabendo que muito provavelmente acabará enganado.
No Iraque de Saddam, prédios escolhidos para inspecção eram esvaziados de um dia para o outro. Após encontrarem documentos importantes, investigadores internacionais acabaram mantidos por 48 horas em um estacionamento até o Conselho de Segurança da ONU emitir, de Nova York, uma reprimenda contra Bagdá. E, em 1998, os cerca de mil inspetores internacionais tiveram de abandonar em 24 horas o Iraque, enquanto EUA e Grã-Bretanha se preparavam para bombardear o país.
No caso da Síria de Bashar Assad, o australiano afirma que as coisas começaram bem. O acordo que russos e americanos firmaram em Genebra, no dia 14, é "um modelo", diz Butler. "Os três pontos fundamentais para acabar com armas químicas de um país estão nesse documento", afirma. Primeiro, a Síria terá de honestamente declarar o que possuiu e essa informação deve ser compatível com os dados de inteligência dos EUA e da Rússia - as potências estimam em mil toneladas o arsenal sírio. Segundo, inspetores deverão verificar o que disse a Síria, tendo acesso a pessoas que trabalharam no programa de armas químicas. Por último, é preciso destruir, remover ou tornar inócuo esse arsenal.
Zona cinzenta.
Há dois grandes desafios à implementação do acordo sobre as armas de Assad, avisa o especialista. O mais imediato é o texto formulado por autoridades de Washington e Moscou. Ele argumenta que "o mundo mudou desde a Guerra Fria" e, para ter legitimidade, o plano precisa estar amparado em uma firme decisão do Conselho de Segurança da ONU. Russos, americanos e europeus discordam sobre os termos de uma resolução.
Mais complicada ainda será a "fase 2" do acordo de Genebra, com o início dos trabalhos de inspetores em território sírio. "Saddam tentava nos enganar o tempo todo e dizer que não poderíamos ter acesso a certos locais. E se na Síria alegarem que não podem garantir o acesso de inspetores, pois os rebeldes estão atacando? Quem arriscará o pescoço para descobrir se é verdade?"
Inspeções internacionais situam-se em uma zona cinzenta entre a diplomacia e a espionagem. A equipe de Butler era permanentemente alimentada com informações de agências de inteligência de vários países.
Ele reconhece que "muito provavelmente" houve casos de pura espionagem: por exemplo, alguns de seus subordinados, depois de reuniões sobre temas sensíveis, repassavam dados às embaixadas de seus países, em violação ao mandato da ONU. O vice de Saddam repetidamente acusava a missão da ONU de ser uma fachada para espionar o Iraque. Butler diz que Aziz lhe confessou uma noite que iraquianos usaram armas químicas contra o Irã, em 1988, e queriam manter um estoque "para se defender dos judeus".
A estratégia do australiano consistia em tentar convencê-lo de que as inspeções eram do interesse de Bagdá, pois, caso funcionassem, as sanções seriam levantadas. Naquele momento, já havia forte escassez de comida e de produtos básicos em todo Iraque, resultado de um cerco internacional sem precedentes. Com a invasão americana, Aziz se entregou e acabou condenado à morte por alta traição. Ele, atualmente, aguarda em uma cela o dia de sua execução.
Butler diz que o mesmo argumento que usava com o premiê iraquiano vale para as autoridades de Damasco que lidarão com os inspetores. "Se pudesse, diria a Assad que o sucesso das inspeções interessa aos sírios. Depois do erro de ter usado armas químicas (na periferia de Damasco), eles nunca mais terão a oportunidade de fazer isso. Um ataque assim jamais será tolerado novamente. O jogo acabou para eles também."