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Ex-prisioneiro chinês de Guantánamo vira pizzaiolo na Albânia

Homem de etnia uigur passou quatro anos detido em presídio americano, mas acabou sendo libertado e ganhando asilo.

Por Stephanie Hegarty
Atualização:

Abu Bakker Qassim é um pizzaiolo como nenhum outro. Ele é um chinês da etnia uigur, do nordeste da China. Foi preso no Paquistão, em 2001, e levado para a prisão americana de Guantánamo, em Cuba, onde estão detidos supostos militantes da rede Al-Qaeda e da milícia Talebã. Qassim agora prepara comida italiana seguindo os preceitos da culinária halal - a cozinha que princípios do islamismo - em um restaurante na Albânia. A sua extraordinária trajetória levou Qassim ao exílio e obrigou-o a separar-se permanentemente de sua família na China. Quando ele deixou a sua terra natal, Xinjiang, ele estava a caminho da Turquia, onde pretendia obter um emprego em uma fábrica de couro e, com isso, ajudar a sua família na China. Primeiro, ele seguiu para a Ásia Central e rumou para o sul do Paquistão, onde pediu um visto para viajar pelo Irã. Ele conta que, enquanto esperava o visto ficar pronto, se hospedou em um ''vilarejo uigur'', do outro lado da fronteira, no Afeganistão. Mas o vilarejo ficava perto de Tora Bora, o complexo montanhoso no leste do Afeganistão que serviu de refúgio a combatentes do Talebã e da Al-Qaeda durante a invasão americana do Afeganistão, pouco após os ataques de 11 de setembro de 2001. Os Estados Unidos começaram a bombardear vários alvos suspeitos de abrigar militantes. Um deles, ao que parece, era o ''vilarejo uigur'' onde Qassim estava. Em princípio, Qassim e seus amigos se esconderam em cavernas; depois, cruzaram montanhas cobertas de neve a caminho do Paquistão. Moradores locais os receberam como hóspedes, mas logo os entregaram às forças americanas, em troca de recompensa. ''Ficamos felizes quando fomos entregues aos americanos'', afirma Qassim. ''Eles costumam ajudar os uigures. Eles disseram: 'Sabemos quem vocês são. A China (com quem a comunidade uigur tem uma relação tensa) é uma inimiga em comum. Nós iremos libertá-los em breve''', relata. Mas ele passou seis meses em uma base aérea americana em Candahar, no Afeganistão. Depois disso, quatro anos em Guantánamo, juntamente com outros 20 uigures. Visita de chineses Em 2005, as autoridades americanas determinaram que Qassim não representava perigo e poderia ser libertado, mas não estava claro o que fazer com ele, já que, assim como outros detentos, ele passou a ser classificados como NLEC (a sigla em inglês para ''não mais combatente inimigo''). Em dado momento, os americanos permitiram que oficiais chineses visitassem os prisioneiros uigures. ''As autoridades chinesas nos disseram que os americanos estavam enfrentando uma forte crise e não podiam nos alimentar'', afirma Qassim. ''Eles disseram: 'Vamos levá-los de volta à China e cuidaremos de vocês'.'' ''Naquela época, eu preferia ter ficado em Guantánamo a ter regressado à China'', afirma, por conta do tratamento duro dado por Pequim à minoria uigur muçulmana da China. Em Guantánamo, Qassim admitiu que havia aceitado comida e acomodação no ''vilarejo uigur'' no Afeganistão. E que ele havia sido treinado para combater, mas as autoridades americanas aceitaram a jusitificativa de que ele estava treinando para ''lutar contra os chineses'', e não contra americanos e aliados. Somente um ano depois, a Albânia se apresentou para oferecer asilo político a Qassim e outros quatro companheiros. Naquela época, diz Qassim, "eu não era nem capaz de encontrar a Albânia em um mapa". A princípio, eles se recusaram a ir porque tinham a informação de que a Albânia, assim como a China de onde haviam fugido, era um Estado comunista. Mas quando foram persuadidos que a Albânia se tornara uma democracia há 15 anos - e que sua população era 70% muçulmana - eles trocaram seus uniformes laranjas de prisioneiros por camisetas, jeans e tênis brancos e, ainda algemados, embarcaram em um avião militar rumo à Europa. Destino incerto O voo durou 12 horas e, assim que o avião pousou, Quassim começou a temer que ele seria levado de volta à China. ''Pensamos que eles haviam mentido para nós'', relembra. "Nós olhávamos para o fundo do avião, no escuro. Não havia luz. Então, vimos um carro chegar. De dentro dele, saíram várias pessoas com aparência europeia, usando ternos.'' Como prometido, as autoridades albanesas ofereceram a eles acomodação, benefícios sociais e o direto ao trabalho. Eles trataram de ir se acomodando a essa nova sociedade. "Meu advogado me aconselhou a aprender albanês e a aprender a fazer algo que poderia ser útil a todos. Eu decidi aprender a fazer pizzas'', conta Qassim. "Eu sabia que os albaneses adoram pizza e eu adoro cozinhar, então foi muito fácil aprender.'' Ele reconhece que ''pizza não é exatamente uma especialidade do meu país'', mas ele encarou a nova profissão com entusiasmo, experimentando com novas receitas e, é claro, usando ingredientes halal. Mas Qassim ainda vive como um refugiado. Ele e outros uigures de Guantánamo não receberam cidadania albanesa ou passaportes, por isso não podem viajar para o exterior. Família Ao ser libertado de Guantánamo, Qassim pôde falar com sua mulher pela primeira vez em cinco anos, mas ele ainda não pôde vê-la, nem suas três filhas. A sua filha mais nova nasceu, inclusive, após ele ter deixado a China. Ele já pediu ao governo da Albânia e às Nações Unidas que pressionem para que sua família possa sair da China para visitá-lo, mas o governo chinês vêm se recusando a acatar o pedido. ''É muito, muito difícil. Elas estão tendo problemas por minha causa. A polícia os visita regularmente. Eles fazem perguntas a respeito das conversas que tenho com elas'', afirma. Qassim já desistiu de voltar a vê-las, exceto por Skype. No ano passado, com o consentimento de sua mulher, ele se divorciou e voltou a se casar, com outra mulher uigur que já vive na Europa. No começo deste ano, ele se tornou pai pela quarta vez, quando sua nova mulher deu à luz uma filha. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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