Exército deixa de ser herói e vira vilão no Egito

Desilusão dos egípcios dá início a nova fase da revolução, que opõe militares e civis, seculares e religiosos

PUBLICIDADE

Foto do author Lourival Sant'Anna
Por Lourival Sant'Anna , CAIRO , LOURIVAL SANTANNA COBRIU A REVOLUÇÃO DO INÍCIO DO ANO , O REFERENDO DE MARÇO e A PRIMEIRA FASE DAS ELEIÇÕES NO EGITO. TAMBÉM PASSOU 8 SEMANAS COBRINDO A GUERRA CIVIL NA LÍBIA.
Atualização:

Em cada país envolvido na Primavera Árabe, as Forças Armadas têm tido um papel distinto. No Egito, ele mudou radicalmente ao longo do ano. De herói das manifestações, o Exército transformou-se em vilão no segundo tempo da revolução, que coincide com as eleições parlamentares.A revolta no Egito não foi provocada pela da Tunísia. Antes de o vendedor de frutas tunisiano Mohamed Bouazizi imolar-se, no dia 17 de dezembro, uma manifestação já havia sido marcada no Cairo para o dia 25 de janeiro por um movimento que nasceu no Facebook com a morte, em junho, de Khaled Said, de 28 anos, espancado por policiais numa lan house depois de exigir que eles se identificassem, ao ser abordado. A data escolhida era o Dia da Polícia, odiada por sua brutalidade e corrupção. A rebelião na Tunísia serviu de combustível para o movimento no Egito.Quando as centenas de manifestantes convergiram para a Praça Tahrir e se transformaram em milhares, a polícia não deu conta de dispersá-los. O então presidente Hosni Mubarak ordenou que o Exército apoiasse a polícia. O marechal Mohamed Tantawi, ministro da Defesa, assim como os comandantes militares, recusaram-se a "massacrar seu próprio povo". Protegeram os manifestantes. A polícia desapareceu das ruas. A perda do apoio do Exército selou o destino de Mubarak, que renunciou em 11 de fevereiro. Assim, a junta militar formada pelo Conselho Supremo das Forças Armadas para conduzir a transição foi bem aceita pelos manifestantes. A Irmandade Muçulmana, reprimida havia décadas pelo regime, aproximou-se dos militares, com benefício mútuo para ambos, emprestando um ao outro prestígio e popularidade das respectivas bases. Partidos seculares e grupos liberais surgidos na Praça Tahrir também chegaram a ver momentaneamente os militares como possível barreira de contenção dos islâmicos e guardiães do Estado laico, como ocorrera na Turquia após o Império Otomano. Conforme os meses passaram, evidenciou-se a diferença de interesses entre militares, de um lado, e civis seculares e islâmicos, de outro. A junta militar protelou eleições e não transferiu poder para o gabinete civil de transição, por ela nomeado. Logo ficou claro que as Forças Armadas trabalhavam para salvaguardar seus poderes, que exercem desde a revolução liderada pelo coronel Gamal Abdel Nasser, em 1952. O estopim da nova revolta foi um esboço de Constituição, segundo o qual os militares aprovariam 80 dos 100 constituintes escolhidos pelo Parlamento eleito e teriam poder de veto sobre o texto. Foi isso que levou a Irmandade Muçulmana a organizar a manifestação de 18 de novembro, que desencadeou a segunda fase da revolução. No dia seguinte, a polícia queimou uma dúzia de tendas deixadas pelos manifestantes na Praça Tahrir. Temerosa de um cancelamento das eleições, na qual era favorita, a Irmandade recolheu-se. Pressionados, os militares prometeram eleição presidencial para até o fim de junho do ano que vem.A disputa de poder no Egito ganhou duas dinâmicas. De um lado, há o embate entre civis e militares; de outro, entre seculares e religiosos. Não é uma acomodação simples. Nas filas de votação, os eleitores sublinharam que queriam conciliar a liberdade recém-conquistada com a estabilidade do tempo de Mubarak. Os egípcios são conhecidos por sua paciência. Agora mais do que nunca vão precisar dela.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.