PUBLICIDADE

Extremistas de vários países usam protesto de caminhoneiros no Canadá como exemplo

Eles podem ser apenas poucas centenas de manifestantes ocupando as ruas de Ottawa para protestar contra a ingerência do governo, mas sua mensagem inflamou ardores pelo mundo

Por Catherine Porter , Ian Austen e Sheera Frenkel
Atualização:

OTTAWA — Passados 11 dias da ocupação em protesto contra as restrições relativas ao coronavírus que paralisa a capital do Canadá, a manifestação tornou-se um grito de união para poderosos grupos de extrema direita e antivacina de todo o mundo, que adotaram a causa.

PUBLICIDADE

O protesto em Ottawa começou em janeiro, como um mal organizado comboio composto por caminhoneiros e outros manifestantes, circulando pelo país para protestar contra a obrigatoriedade de vacinação aos motoristas que atravessam a fronteira entre Canadá e Estados Unidos. A manifestação logo atraiu apoio de mais canadenses exaustos com quase dois anos de restrições relacionadas à pandemia.

Alguns manifestantes são claramente extremistas, ostentando símbolos nazistas e danificando monumentos públicos. Mas muitos descreveram a si mesmos como canadenses comuns, levados às ruas pelo desespero. “Eles continuam fazendo as mesmas coisas, e isso não está funcionando”, afirmou a cabeleireira Nicole Vandelaar, de 31 anos, em meio a um dos protestos na capital. “Eles têm de fazer alguma outra coisa e nos deixar viver nossas vidas.”

No domingo, após um fim de semana de turbulentas manifestações, as autoridades de Ottawa declararam estado de emergência e afirmaram que a polícia estava sobrecarregada. “Continuamos a acionar todos os policiais à disposição, não há dias de folga”, afirmou o chefe de polícia de Ottawa, Peter Sloly, na segunda-feira. “Isso não é sustentável.”

A mensagem no coração dos protestos — de que o governo tem exacerbado sua autoridade por tempo demais — ressoou muito além das fronteiras canadenses. Doadores contribuíram com milhões de dólares em campanhas online, e hashtags, imagens dos protestos e mensagens de apoio aos manifestantes espalharam-se vastamente pelas plataformas de redes sociais.

Comboio de caminhões bloqueia passagem na fronteira do Canadá com os EUA em Coutts, Alberta Foto: Jeff McIntosh/The Canadian Press via AP

O protesto também desencadeou discussões sobre manifestações similares nos EUA. Caminhoneiros americanos estão planejando lançar seu próprio comboio, da Califórnia a Washington, afirmou Brian Brase, caminhoneiro envolvido na organização do esforço.

Fotos dos caminhoneiros canadenses apareceram inicialmente em grupos antivacina no Facebook e em outras redes sociais cerca de duas semanas atrás. Desde então, proeminentes figuras da extrema direita em numerosos países, incluindo EUA, Austrália e Alemanha, têm louvado os protestos, retransmitindo suas imagens e argumentos ainda mais além.

Publicidade

A hashtag usada pelo caminhoneiros, #FreedomConvoy (Comboio da Liberdade), espalhou-se rapidamente pelas redes sociais. No Facebook, a hashtag foi compartilhada mais de 1,2 milhão de vezes desde 24 de janeiro, de acordo com a CrowdTangle, uma ferramenta de análise do Facebook.

Outro grupo de Facebook dedicado a acompanhar e dar apoio aos caminhoneiros atraiu aproximadamente 700 mil seguidores.

A Meta, empresa-mãe do Facebook, afirmou que removeu vários grupos associados ao comboio por violar regras da plataforma relativas a comportamento inautêntico. Um grupo encaminhava usuários para sites externos de compras. Outro grupo violou as regras do Facebook por compartilhar conteúdo ligado ao movimento de teorias de conspiração QAnon, que foi banido da rede social. A empresa afirmou que ainda está analisando outros grupos formados em conexão ao protesto dos caminhoneiros.

No aplicativo de mensagens Telegram, várias figuras de direita, incluindo Dan Bongino, Michael Flynn e Ben Shapiro, promoveram o protesto e compartilharam links de sites de arrecadação de recursos que levantaram milhões de dólares. Grupos antivacina dos EUA também começaram a formar braços locais do movimento e insistiram aos caminhoneiros americanos que também adotem as táticas vistas no Canadá.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Uma página da GoFundMe criada em 14 de janeiro acumulou mais US$ 7,8 milhões antes de ser congelada pela plataforma de crowdfunding e posteriormente cancelada, na sexta-feira. Em um comunicado, a empresa afirmou que os doadores poderiam solicitar reembolso. A GoFundMe tinha encaminhado cerca de US$ 789 mil daquelas doações antes da página ser fechada, após a empresa se consultar com a polícia.

Nos EUA, o senador Ted Cruz, republicano do Texas, pediu para a Comissão Federal de Comércio investigar a GoFundMe em relação ao cancelamento da campanha, acusando a plataforma de crowdfunding de ludibriar os doadores. Desde então, apoiadores têm direcionado doações para outros sites, incluindo a GiveSendGo, uma plataforma cristã de crowdfunding que até a noite da segunda-feira havia captado mais de US$ 5 milhões.

Os fundos serão usados para “prover ajuda humanitária e assistência legal para os pacíficos caminhoneiros e suas famílias”, afirmou por e-mail a porta-voz da GiveSendGo, Alex Shipley.

Publicidade

Manifestantes antivacina fecham passagem na fronteira canadense com os EUA em Coutts, Alberta, em 31 de janeiro Foto: Jeff McIntosh/The Canadian Press via AP

A ocupação paralisou os centros urbano e político de Ottawa, provocando irritação insone e ansiedade entre os moradores da capital canadense e obrigando muitos estabelecimentos comerciais e empresas a fechar as portas, ocasionando perdas de dezenas de milhões de dólares.

Mas mesmo enquanto um crescente número de políticos os denuncia, os manifestantes que ocuparam os elegantes edifícios do Parlamento canadense deixaram claro uma coisa: Não pretendem sair de lá.

Loading...Loading...
Loading...Loading...
Loading...Loading...

Sloly, o chefe de polícia, afirmou em uma conferência de imprensa na segunda-feira que sua corporação necessitaria de mais 1,8 mil policiais — a força possui atualmente 1,2 mil agentes — para pôr fim à ocupação. Não ficou claro de onde viriam esses policiais adicionais.

Sloly foi criticado por permitir que os manifestantes bloqueassem e isolassem regiões inteiras da cidade com seus pesados caminhões e tocassem as buzinas dos veículos tarde da noite. Sua corporação, já reforçada por centenas de policiais de outras forças, começou a responder. No domingo, policiais interditaram uma área de preparação dos manifestantes bem distante do centro e confiscaram mais de 3 mil litros de diesel.

Regras nas províncias

Quase dois anos após a pandemia atingir o Canadá, o país continua adotando variados estágios de lockdown, com refeições em ambientes fechados banidas nas duas maiores províncias do país, Ontário e Quebec, até pouco tempo atrás. Lojas, galerias e cinemas foram fechados ou tiveram a capacidade limitada em grande parte do país, onde as regras variam entre as províncias.

Alguns dos líderes dos protestos pediram que o primeiro-ministro Justin Trudeau suspenda medidas contra a pandemia tanto nacionais quanto locais — uma impossibilidade constitucional.

Publicidade

Na segunda-feira, vários ministros do gabinete de governo concederam entrevista coletiva, denunciando os manifestantes como extremistas fora da lei, que se antagonizaram contra muitos moradores da cidade. Marco Mendicino, ministro de Segurança Pública Federal, afirmou que não deveria haver nenhuma negociação com os manifestantes.

“Seria um terrível precedente afirmar que, se alguém aparecer na capital do país com equipamento pesado e bloquear a cidade, é capaz de forçar mudanças inconsequentes na nossa política pública”, afirmou Mendicino, acrescentando que “os canadenses merecem se sentir seguros em suas comunidades, e ninguém está acima da lei”.

No epicentro do protesto, na segunda-feira, o ambiente era festivo e o sol brilhava, elevando a temperatura para pouco abaixo de zero. Cartazes improvisados decoravam as grades de ferro que cercam o terreno do Parlamento. “Para covardes, a liberdade sempre é extremista”, dizia um deles.

Um grupo de pessoas dançava à música que saía dos alto-falantes instalados na carroceria de um enorme caminhão. A bandeira canadense tremulava pendurada num gigantesco guindaste.

“Quero liberdade”, afirmou a cuidadora Rodica Stricescu, de 64 anos, que nasceu na Romênia e veio para o Canadá poucos anos depois da queda da União Soviética. “Fugi do comunismo para estar aqui. Não quero que essa mesma situação aconteça por aqui.”

Stricescu tinha dirigido oito horas, de Windsor, Ontário, pelo segundo fim de semana consecutivo, para participar dos protestos com a filha. “Retornarei até que eles digam sim”, afirmou ela.

Alguns dos manifestantes, como Stricescu, afirmaram que haviam se vacinado — mesmo que relutantemente. Outros, como Vandelaar, estavam entre os 16% dos canadenses que não receberam nenhuma dose de vacina. “O primeiro-ministro se vacinou com três doses, se distancia socialmente e, ainda assim, pegou”, afirmou ela.

Publicidade

Vandelaar, cabeleireira de Wainfleet, uma localidade rural a sete horas da capital, usava roupas customizadas especialmente para o protesto: um boné preto com a expressão “minoria extremista” escrita sobre a aba e uma blusa de moletom com a frase, “Integrante orgulhosa de uma minoria extremista com visões inaceitáveis”.

Ambas as mensagens faziam referência à crítica de Trudeau, que qualificou os manifestantes na semana passada como uma “pequena minoria extremista”.

Na segunda-feira, o ministro Hugh McLean, da Corte Superior de Ontário, ofereceu algum alívio aos moradores de Ottawa, decidindo favoravelmente a uma liminar temporária que impede os buzinaços dos caminhoneiros e autoriza a polícia a prender ou remover do protesto aqueles que violarem a ordem conscientemente.

Muitos moradores de Ottawa estão estarrecidos. “Isso é incrivelmente egoísta”, afirmoua cabeleireira Zully Alvarado, caminhando em meio à manifestação com o rosto coberto por uma máscara — um símbolo, segundo ela, de seu comprometimento com a maioria vacinada. A moradora de Ottawa afirmou que o barulho e os bloqueios resultantes da ocupação surtiram grande efeito nas pessoas que já sofriam com problemas de saúde mental, assim como nos sem-teto. “Não é este o espírito canadense”, afirmou ela.

Fartos do que qualificam como uma resposta “tímida" da polícia ao protesto, alguns moradores de bairros tomados por caminhões estão desafiando os manifestantes.

Na Kent Street, em Ottawa, Christopher Renaud, frustrado com as muitas noites sem conseguir dormir, chutou um galão de combustível vazio colocado no meio da rua. Seguiu-se uma inflamada discussão com vários manifestantes.

“Estou num ponto em que um carro buzinando normalmente já me tira do sério”, afirmou Renaud, que trabalha para o governo, depois de se afastar. “Nunca me senti tão abandonado pelo governo.” 

Publicidade

Um manifestante aproximou-se e pediu desculpas a Renaud pelo transtorno. “Invadimos a sua cidade para defender nossos direitos cívicos”, afirmou ele a Renaud. “Porque sentimos que nossos corpos estão sendo invadidos.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.