Falta de definição dos EUA deixa o mundo atordoado

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Por Agencia Estado
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Durante todo o fim de semana, os dirigentes europeus continuaram a fazer uma grande ginástica: por um lado, solidariedade inteira, absoluta, entusiasta, frenética com os Estados Unidos e, por outro, hesitações, tergiversações e reservas sobre a escolha dos meios do contra-ataque. É preciso dizer que os americanos nada fizeram para provocar uma solidariedade mais estreita: os Estados Unidos meditam sozinhos sobre sua decisão no silêncio de Camp David. A Europa simplesmente aguarda. Hubert Védrine, o ministro francês das Relações Exteriores, declarou hoje na TV: a França ignora tudo o que se trama no Pentágono e na Casa Branca. Aliás, como as outras capitais européias (a não ser que a Grã-Bretanha, talvez...). Bush fez um esforço imenso para conseguir a compaixão dos países estrangeiros e uma solidariedade teórica, mas não fez muito mais (mesmo as equipes de socorro, preparadas pelos europeus para ajudar os bombeiros nova-iorquinos, não receberam o "sinal verde" e foi preciso descarregar seus aviões cheios de material de socorro). E no que diz respeito à compaixão, funcionou bem. Como poderia ser diferente, diante de um horror como esse, uma barbárie tão repugnante, diante desses milhares de cadáveres? As crianças francesas, como todos os estudantes do mundo, ficaram emocionadas. No Saara, os nômades da região de Ingal, à beira do deserto, fizeram três minutos de silêncio. Na Groenlândia, os esquimós também fizeram três minutos de silêncio. Mas o que mais? Além disso, a espera, a expectativa. Observa-se um fenômeno curioso: no primeiro dia, no primeiro instante após a infâmia, as coisas eram claras. Mas, à medida que o tempo passa, à medida que a emoção estupefata dá lugar às análises, à racionalidade, às informações, aos testemunhos, o quadro torna-se confuso. É que foram descobertos ao mesmo tempo a amplitude, os perigos e a complexidade do que aconteceu. A amplitude: sem dúvida, foram os Estados Unidos que tiveram o coração visado e foram humilhados, mutilados, mas é toda a geopolítica mundial que começa a vacilar, a se mexer e a tremer. E mesmo que se admita que existe um homem para organizar o horror, Bin Laden, é claro que esse homem é apenas o piloto de uma máquina terrível cujas ramificações se estendem em toda a Europa, na América do Norte, em uma grande parte da Ásia. Os perigos: a Europa (aliás, assim como os Estados Unidos) avaliou a universalidade, a enormidade, a densidade, o exagero do ódio que a sociedade ocidental (cristã, capitalista e ocidental, tudo misturado) conseguiu suscitar contra ela. Essa sociedade ocidental tão gentil, tão cristã, tão limpa, tão moral e tão generosa registrou o incompreensível: milhões de homens, no mundo desejam seu sofrimento e sua morte. Perigo máximo. A complexidade? As contradições da diplomacia americana, esquartejada entre as seqüelas do combate de Titãs contra a União Soviética, os interesses das grandes empresas, principalmente petrolíferas, um grande egoísmo e a missão civilizadora que os Estados Unidos, messiânicos, pensam ter causaram apreensões. Particularmente, três regiões do mundo testemunham essas contradições: O Afeganistão, onde os talebans, como Bin Laden, foram ajudados por Washington (dissemos isso muitas vezes); o Paquistão, aliado privilegiado dos Estados Unidos, mas protetor e "patrono" dos piores islamitas afegãos; e, enfim, os príncipes da Arábia Saudita, fornecedores de petróleo, amigos absolutos dos Estados Unidos e de seus comerciantes, mas ao mesmo tempo financiadores do terror fundamentalista. Das mentiras, das trapaças e das cartas falsas, não há melhor testemunho que a linguagem que floresce desde a última quarta-feira, no mundo inteiro e, sobretudo, nos Estados Unidos. Poderíamos fazer um dicionário de palavras hipócritas que circulam há cinco dias. Dois exemplos entre cem. Ouvimos sem parar acusações aos "terroristas" que atingiram Nova York. Bem, não há o que dizer: esses homens são ignóbeis. Mas os comentários acrescentam ritualmente que esses atentados foram infames (o que é verdade) e que os pilotos foram "covardes" (o que é falso). Neste caso, a linguagem funciona de cabeça para baixo e com os pés para cima. Homens que jogam seu avião contra edifícios, ou seja, suicidam-se por uma causa, são criminosos, mas não são covardes. Infelizmente, sua coragem é infinita. Essa coragem é desprezível sórdida, fétida, mas infelizmente existe. E dizer que o "branco" é "preto" e que o "preto" é "branco" não ajuda a verdade a avançar. Aliás, é chocante que essa acusação de covardia seja proferida pelos Estados Unidos, que, até terça-feira passada, preconizavam a "guerra com morte zero" (morte zero americana), e que demoliram grandes edifícios de Bagdá e de Belgrado, lançando mísseis de longo alcance sobre eles, sem se arriscar ao menor arranhão. Outro exemplo: fala-se de uma Cruzada (mas ao mesmo tempo explica-se que não é preciso atacar os muçulmanos). Fala-se de uma "guerra". Mas o que significa uma guerra que não se sabe quem a conduz e que não opõe espaços nem Estados nem exércitos? Uma guerra que ninguém declarou. Que não obedece a nenhum dos códigos, dos acordos, dos protocolos que as mais terríveis guerras sempre respeitaram (pelo menos, em princípio)? Em certo sentido, mascarar o que se passa desde terça-feira com o nome de "guerra", é tentar neutralizar o veneno, é tentar torná-lo normal, fazê-lo entrar no plano do pensamento que já funciona há dois mil anos, desde que os homens se guerreiam. Ora, precisamente, os "diabolismos" e o horror desses acontecimentos é que a palavra "guerra" não lhes convém. Mas então, que palavra lhes é conveniente? Exatamente: ainda não existe palavra para descrever essa coisa "desumana". Em suma, o uso da palavra "guerra" visa a "civilizar", se é que se pode dizer assim, o inominável. Poderíamos nos interrogar longamente sobre essas licenças semânticas. Uma análise simplista dirá que os americanos e os jornalistas americanos e europeus, martelando palavras como "civilização", "mal e bem", "guerra", "covarde" etc. querem apenas galvanizar as energias, à custa dessa violação da linguagem. Provavelmente, a realidade é mais obscura, mais inquietante também: é a própria linguagem que é impotente e, como tal, tornou-se enlouquecida ou paralisada. Ela tromba com objetos, com acontecimentos que ultrapassam toda a linguagem e que, até hoje, jamais figuraram em nenhum dicionário. É próprio do desumano transbordar toda a linguagem.

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